Igreja de Santo Antonio de Itatiaia , MG

quinta-feira, 11 de junho de 2009

Família Escócia Sandoval

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Roberto Sandoval rlavodnas@hotmail.com ou rlavodnas@gmail.com


Capítulo I - Catarina Escócia Sandoval

Catarina foi batizada no Ribeirão do Carmo , atual cidade de Mariana , MG , por 1711 , faleceu aos 30/08/1738 , era irmã de Thereza Quiteria de Jesus (Sandoval) , esta casada com João Barbosa Lima , cuja família está descrita no Blog : http://rlavodnas.blogspot.com/
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Dos registros da Igreja Matriz de Santo Antonio da Itatiaya - Batismos Obitos de 1731 a 1747
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"Em trinta de agosto de mil sete centos e trinta e oito annos faleceo da vida prezente e foi sepultada dentro desta Matriz em sepultura da Irmandade da Santissima, Catherina de Scocia Sanduval natural desta . . . baptizada na freguesia do Ribeirão do Carmo filha legitima de João Lourenço de Magalhães já defunto e de Donna Barbara de Scocia casada com Manoel Martins Ruyvo nesta freguesia de cujo matrimonio ficarão filhos fez testamento . . .. officio e corpo presente deyxa . . . missas em louvor das cinco chagas de Jesus Christo . .. "
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Catarina casou-se , por 1725 , com Manoel Martins Ruivo , natural do Lugar da Bagoada, Freguesia de Loivo, Vila Nova de Cerveira, Portugal , batizado aos 5 de Fevereiro de 1697 no mesmo Lugar da Bagoada , filho de Domingos Martins Ruivo e de Catarina Martins.

Manoel Martins Ruivo :
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"...foi de tenra idade para o Brasil, onde casou e teve uma filha que casou com António Fernandes de Barros..." (retirado da habilitação de genere de um neto, Joaquim José Rangel de Macedo).


As irmãs Catarina de Escocia Sandoval e Thereza Quitéria de Jesus (Sandoval) eram filhas de João Lourenço de Magalhães e de Bárbara de Escocia Sandoval , que seguem no blog http://rlavodnas.blogspot.com/

Catarina de Escócia Sandoval e seu marido Manoel Martins Ruivo deixaram , pelo menos , os seguintes filhos :

1) Ana Rangel de Macedo , nascida por 1725 , que segue no cap. seguinte
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2) Leonarda , batizada aos 09/06/1734 na Igreja Matriz de Sto Antonio em Itaiaia , MG.
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3) Manoel , batizado aos 03/04/1736 , idem
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2) Ângela , batizada aos 14/07/1738 , idem

Dos registros de Itatiaia , MG :
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"Em nove de junho de mil sete centos e trinta e cuatro baptizey e pus os oleos a Leonarda filha de Manoel Martins Ruyvo e sua mulher Catherina de Scocia foy padrinho Pedro da Costa Freyre de que fiz este assento e assigney
Vgð Antonio Furtado"
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" Em tres de abril de mil sete centos e trinta e seis annos com licença do Reverendo Vigario Baptizou o Reverendo Padre Francisco Nunes a Manoel filho de Manoel Martins Ruyvo e de sua mulher Dona Catherina de Scocia pos os santos oleos forão padrinhos Domingos Ferreira de Carvalho e Clara Maria das Neves mulher do . . . . moradores nesta freguesia de que fiz este assento e assigney.
Coadjutor Vigð Diogo João Alvares"
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“Angella
Em catorze de Julho de mil sete centos trinta e oito annos Baptizou o Reverendo Vigario a Angella filha de Manoel Martins Ruivo e de sua molher Donna Catherina de Scocia e lhe poz os Santos Olleos foi padrinho João Barboza Lima morador no Ouro Branco de que fis este assento e me assignei.
Coadjutor
O P. Diogo João .....”.


Capítulo II – Ana Rangel de Macedo

Ana nasceu por 1725 em Itatiaia , MG , casou-se , primeiramente , com Diogo Alves de Araújo Crespo aos 20/05/1745 na Igreja de Nossa Senhora da Conceição de Ouro Preto, MG :

"Aos vinte dias do mes de mayo de mil setecentos e quarenta e cinco das coatro horas . . . da tarde pouco mais ou menos, depois de feytas as denunciações em ambas as freguesias desta villa e na do Ouro Branco, na . . . de Nossa Senhora do Rosario dos Brancos de Padre Faria filial desta na . . . Nossa Senhora da Conceição de Villa Rica, na . . . . em minha presença e de . . . . . sacramento do matrimonio de palavras de presente, Diogo Alves de Araujo Crespo , filho legitimo de Joam Alves Crespo e de sua mulher Ventura de Araujo Castro, natural e baptizado na Freguesia de Sam Miguel de Medegans Termo de Valadares comarca de Valença, Bispado, digo Arcebispado de Braga, morador nesta villa e Dona Anna Rangel de Macedo , filha legitima de Manoel Martins Ruyvo e de Dona Catherina de Escocia Sandoval, baptizada na freguesia da Itatiaya, moradora na Va. Ouro Branco, por . . . . livres e desempedidos e sem impedimento algum que por tais termos . . . . o Reverendo Doutor Vigario, digo, receberam as bençãos segundo os ritos de . . . Santa Madre Igreja, tendo . . . .testemunhas presentes Manoel Dias da Costa . . . . Doutor Manoel Pinto . . . com outros mais de que fiz esse assento.
Vigario Em. João Soares de Albergaria".


Em 1746 , Diogo Alves de Araújo Crespo foi inventariado , sendo inventariante a viúva Ana Rangel de Macedo , deixou um filho de nome Manoel de dois meses , fez testamento declarando :

“..... declaro que sou natural da freg.a de São Miguel de "Massagag" do Lugar de Cova , Termo da Vila de Valadares , Comarca de Valença do Minho , Arcebispado de Braga , filho legitimo de Felipe Alves Crespo , já defunto , e de Ventura de Araujo de Castro e sou casado com dona Ana Rangel de Macedo .....”

Depois de viúva , Ana Rangel de Macedo casou-se com Antonio Fernandes de Barros , natural da Freguesia de S. Pantaleão de Cornes, Vila Nova de Cerveira , Portugal.

Por 1750 ou 1751 , retornou a Portugal Antonio Fernandes de Barros com sua mulher Ana Rangel de Macedo e tiveram , pelo menos , um filho de nome Antonio Jose.

Deste segundo matrimônio de Ana Rangel de Macedo com Antonio Fernandes de Barros , ficaram , pelo menos , os seguintes filhos :

1) Antonio Pereira Rangel , nascido em 1749

“Por uma Provisão do Exmð Sr. D. António Maciel Calheiros Arcebispo / de Lacedemónia datada em 12 de Março de 1799 abri assento se / guinte António Pereira Rangel morador nesta Freg.a de S. Julião de / Lisboa foi baptizado em o dia dezassete de Setembro do ano de mil / setecentos quarenta e nove na Freg.a de N.S. do Pilar do Ouro / Preto no Bispado de Mariana por fð legítimo de Antð Fernandes / de Barros n.al da Freg.a de S. Pantaleão de Cornes Arcebispado de / Braga e de D. Anna Rangel de Macedo n.al da Freg.a de St. / António da Itatiaya do mesmo Bispado de Mariana sendo / seus Padrinhos José Correa Maia e Maria Josefa Gomes (?) como de / monstra por uma certidão extraída do próprio assento que para se / abrir este assento ofreceo e a mesma Provisão declara que este / não prejudicará a terceiros (?) o que tudo neste livro lavrei e assinei.
P Prior P.e Filipe de Sousa Pinto”.


Rui Manuel Mesquita Mendes deixou um novo comentário sobre a sua postagem "Família Escócia Sandoval":

Viva, 

Achei esta informação muito interessante para descobrir as raízes de António Pereira Rangel, Cavaleiro da Ordem de Cristo, morador no fim do século XVIII na praça do Pelourinho (do Município), de Lisboa, na freguesia de São Julião.

Em Lisboa era homem muito rico dono de várias propriedades na periferia, quer a norte quer a sul do rio Tejo, tendo sido casado com D. Luiza do Nascimento e sendo já falecido em 1822.
Foi pai de outro do mesmo nome que casou em Lisboa, na freguesia da Encarnação, em 22-8-1805, com D. Ana Bonifácia do Vale.
Foi proprietário de uma quinta denominada do Rangel, no concelho de Almada (onde eu vivo), defronte do Cristo Rei de Lisboa, propriedade hoje inexistente.
Foi também proprietário de uma grande Quinta, no actual concelho do Barreiro (ambas na outra banda do Rio Tejo), no lugar de Santo António da Charneca, denominada Quinta do Corvo, junto da qual mandou erigir para o culto dos moradores uma Ermida dedicada a Santo António, também dela já desaparecida.

É interessante verificar que muitos dos homens aqui citadas são originários do Alto Minho (Valença, Vila Nova de Cerveira) de onde, penso, terão vindo muitos mestres pedreiros para as obras do barroco mineiro ... terão sido estes os casos aqui citados?

Att/

Rui Manuel Mesquita Mendes



2) Joaquim , nascido aos 27/01/1754

"Aos tres dias de Fevereiro de mil setecentos e sincoenta e quatro annos nesta Parochial Igreja de São Julião da Sylva do termo de Valença baptizey solemnemente , e pus os Santos Oleos a Joaquim filho legitimo de Antonio Fernandes de Barros , e de Dona Anna Rangel de Macedo moradores no Lugar do Barral desta freguezia , neto pela parte paterna de Francisco Fernandes de Barros e de Pascoa Gonçalves da freguezia de São Pantalião de Cornes do lugar da Berrega termo de Villa Nova de Cerveira , neto pela parte materna de Dona Catharina Escorcia Sandoval e do Capitão Manoel Martins Ruivo da freguezia do Loivo , Lugar da Bagoada termo de Villa Nova de Cerveira , nasceo em os vinte e sete de Janeyro do prezente anno , foi Padrinho Manoel Pereira dos Santos Familiar do Santo Officio da freguezia de São Miguel de Fontoura do termo de Valença. E para constar fiz este assento Era ut Supra.
O Abb.e Gaspar Duraens
Manoel Pr.a dos Stos
Padre Jorge da Lyma Cretta".


3) João Bento , nascido aos 27/12/1755

"João Bento filho legítimo de Antonio Fernandes de Barros e de sua mulher Dona Anna Rangel de Macedo do Lugar do Barral desta freguesia de São Julião da Silva nasceo em o dia vinte e sete de Dezembro de mil setecentos e sincoenta e sinco na madrugada do dito dia e o Reverendo Felis Manoel Marinho sob(u)chantre na Insigne Collegiada de Valença , com minha Licença o Baptizou e lhe pos os Santos Oleos em os trinta e hum do sobredito mes de Dezembro do mesmo anno : foram padrinhos digo foy padrinho Bento de Mello Bezerra de Abreu de Lima e com procuraçam que se me aprezentou tocou e tirou da Pia Baptismal ao Baptizado o Reverendo Jorge de Lima Creta da freguezia de Santa Eulalia de Cerdal , e o sobredito Padrinho de Sâo Miguel de Fontoura , he neto pela parte paterna de Francisco Fernandes de Barros e de Pascoa Gonçalves da freguezia de São Pantaleão de Cornes , pela parte materna de Manoel Martins Ruyvo e de sua mulher Dona Catharina Escorcia Sandoval já defunta da freguezia de Santo Antonio da Itaverava [Itaberaba] dos Estados do Brasil Comarca de Villa Rica Bispado de Mariana , e para constar fiz este assento dia mes e anno ut Supra.
O Abb.e Gaspar Duraens
Felis Manoel Marinho
Jorge de Lima Cretta"


Manoel Martins Ruivo , creio eu , deve ser o mesmo que está citado no livro "A Outra Família , Concubinato , Igreja e Escândalo na Colônia" pelo autor Fernando Torres Lodoño , na página 157 , com referências a AEAM 1756 - 1757 , Pitangui , 2-8.

Capítulo III - Registros familiares desentroncados

1) Registro do livro de casamentos dos anos de 1785-1803 da antiga Matriz , Igreja de São Jose do Rio de Janeiro :

"Jose
Pires
Fernan-
des com
d. Anna
Marco-
lina Es-
corcia

Aos quatorze dias do mes de outubro de mil setecentos e oi- / tenta e seis annos nesta Matriz de S. Jose da Cidade do Rio de Janeiro , pelas tres horas da / tarde , feitas as diligencias , que manda o Sagrado Conc. Trid. e Const. do Bispado , sem que / houvese impedimento algum como melhor me constou de huma Provisão do Muito Reveren- / do Doutor Juiz de Casamentos Francisco Gomes Villas Boas , assisti sollemnemente ao Sacramento /do Matrimonio , que perante mim celebrou Jose Pires Fernandes , filho legitimo de Ma-/ noel Pires Fernandes e de Anna Maria de Jesus natural e baptizado na fregue- / zia da Candelaria , com D. Anna Marcolina Escorcia Sandoval , filha legiti- / ma de João de Araujo Moreira e de D. Leonarda Maria Escorcia Sandoval / natural e baptizada na Sé desta Cidade; lhes dei as bençoens na forma do / Ritual Romano e se confessaram um dia antes , sendo testemunhas prezentes alem de /[rasgado] Antonio Correa da Costa Pimentel e Manoel Gomes de Araujo Bacelar , pessoas / de mim conhecidas e abaixo commigo assignadas , de que fiz este assento /
O Coadjutor Francisco Xavier Pinna
Ant.o Correa da Costa Pim.el
Manoel Gomes Ar.o Bacellar".
(Sic).


Capítulo IV - Curiosidade (em pesquisas):

De: António Braz de Oliveira boliveira@bnportugal.pt
Para: Roberto Sandoval rlavodnas@yahoo.com.br

Enviadas: Terça-feira, 11 de Setembro de 2012 6:14

Assunto: Dª Angela Maria de Morais‏

Prezado Senhor Roberto Sandoval,
Desculpe o meu silêncio e receba o meu agradecimento pela resposta que deu.
Tanto quanto podemos por ora conjeturar, Dona Ângela Maria de Morais (nome pelo qual a sua familiar aparece mencionada num documento que se encontra no Arquivo Nacional da Torre do Tombo em Lisboa, no qual também se diz que era de Itatiaia e filha de Manuel Martins Ruivo e Catarina de Escócia Sandoval) casou com Francisco Ferreira de Sousa, em data e local que ignoramos (entre os anos 1756 e 1760?).
O documento dá-a como moradora no Rio, na freguesia da Candelária, em 1764. Francisco F. de Sousa diz-se aí “licenciado” e supomos que seja o mesmo cirurgião do 1º regimento do Rio que aparece mencionado noutras fontes, naquele ano.
Estamos ainda na fase inicial de exploração das fontes arquivísticas que trazem estas menções. Como sabe, nem sempre é fácil perceber exatamente quem é quem.
Como deve calcular, não temos acesso fácil às fontes de Itatiaia que transcreveu no seu blog e não sabemos se as mesmas estão hoje disponíveis em linha, ou como as devemos mencionar com precisão. Toda a ajuda que nos puder é preciosa.
Muito Grato pela atenção,

António Braz de Oliveira
Assessor principal da Biblioteca Nacional de Portugal

Em novembro de 2014 , recebi de Antonio Braz de Oliveira uma cópia do livro sobre o Dr Jose Pinto de Azeredo , que abaixo seguem partes :

José Pinto de Azeredo
Ensaios sobre algumas enfermidades de Angola
Edição de : António Braz de Oliveira e Manuel Silvério Marques
Estudos de : Adelino Cardoso, António Braz de Oliveira, Jean Luiz Neves Abreu, Manuel Silvério Marques e Pedro Abecassis

Biblioteca Nacional de Portugal
– Catalogação na Publicação
. – (Universalia. Série ideias ; 8)
ISBN 978-989-689-349-1
CDU
 Título original:
Título: Ensaios sobre algumas enfermidades de Angola
Autor:  José Pinto de Azeredo
 Edição: António Braz de Oliveira e Manuel Silvério Marques
Revisão: A. Miguel Saraiva
Ilustração da capa:            
Depósito Legal n.º  364 561/13
Lisboa, Outubro de 2013

Apresentação

A presente edição de Ensaios sobre algumas enfermidades de Angola, de José Pinto de Azeredo (1764-1810), insere-se no conjunto de realizações que o Projeto «José Pinto de Azeredo, Doutrina e Clínica. Textos e contextos», financiado pela Fundação Calouste Gulbenkian, Departamento de Saúde e Desenvolvimento, se propõe alcançar.
José Pinto Azeredo deixou um valioso espólio médico adormecido durante mais de duzentos anos nas bibliotecas e nos arquivos nacionais.
Infelizmente, pois o pouco que deu ao prelo augurava o melhor: duas notáveis expressões das ciências e do pensamento das Luzes em Portugal  – em 1790 «Exame Quimico da Atmosphera do Rio de Janeiro» e em 1799 Ensaios sobre algumas Enfermidades de Angola. Um fac-símile deste último título foi publicado pelo Instituto de Investigação Científica de Angola em 1967 com um estudo biobibliográfico de Mário Milheiros.
O Projeto «José Pinto de Azeredo, Doutrina e Clínica. Textos e contextos» assumiu a obrigação de estudar e dar a conhecer a Vida e a Obra de J. P. A. «no respetivo contexto social e cultural e no diálogo que manteve com outros domínios científicos e especulativos da época»; «reconhecer e seriar para edição os manuscritos deixados por José Pinto de Azeredo» e «publicar as obras inéditas mais significativas [...] que conformam e/ou situam a Obra de José Pinto de Azeredo e, em leitura atualizada, os seus Ensaios sobre algumas enfermidades de Angola».
Daí a presente edição, compondo o que gostaríamos de designar por primeiro volume das  Obras Médicas de José Pinto de Azeredo que esperamos ajudar a construir. Trata-se aqui de uma edição em que a grafia foi atualizada, mas que regista as principais variantes encontradas no manuscrito existente no  ANTT e que supomos valorizada com um  Glossário coligido entre as autoridades da época. Inclui, ainda, quatro estudos de investigadores do Projeto: (i) a biografia de J. P. A., correta e aumentada com factos novos acerca do seu percurso formativo; (ii) uma revisitação aos saberes médicos luso-brasileiros no Iluminismo, no contexto cultural do Brasil, então renascente «centro» cultural; (iii) a determinação e discussão da Ciência da Arte Médica que o físico-mor aprendeu em Universidades europeias e (como ele próprio afirma) no livro da Natureza, acerca das febres, disenterias e tétanos de Angola; finalmente, (iv) a releitura de alguns aspetos mais pregnantes da teoria, da epistemologia e da ideologia médicas do precursor da medicina tropical portuguesa.

PROJETO
JOSÉ PINTO DE AZEREDO, DOUTRINA E CLÍNICA
TEXTOS E CONTEXTOS
Resumo
Português: José Pinto de Azeredo (1764-1810) foi um médico iluminista luso-brasileiro que estudou com Cullen em Edimburgo, onde, provavelmente, assistiu às aulas de Química de Black. Cedo se assumiu como filósofo natural e cientista. Em 1790 realizou exames químicos sobre a pureza  do ar do Rio de Janeiro. Em 1789 foi nomeado Físico-mor de Angola, onde criou a primeira Escola Médica (1791-1797). Aí ensinou anatomia e medicina e preparou os Ensaios sobre algumas enfermidades de Angola (1799). Clínico, crítico de Cullen, Azeredo iniciou, com Nabuco, Bernardino Gomes, Melo Franco e outros, uma abordagem nova das doenças tropicais. Aprofundando os nossos estudos em torno de Azeredo, da ciência, do corpo, da doença e do hospital modernos, temos como objetivo principal a publicação, análise e contextualização de obras suas inéditas e dos  Ensaios. Salientamos  Isagoge Pathologica do Corpo Humano, obra notável da medicina portuguesa: é um vade-mécum da Medicina da Ilustração. Complementam-no uma Collecção de Observações Clínicas, «fichas terapêuticas», lições de matéria médica, de química e de ciências. Qual o seu real valor? Porque ficaram no limbo? Por estas razões pretendemos aclarar e reconstruir tópicos do seu discurso médico, dar a conhecer o seu pensamento e escrutinar a sua singular biografia.

Capítulo V -  Genealogia e pesquisa de Luís Filipe Duarte Faria de Sousa


Em memória de meu pai, sempre presente em mim

Uma árvore muito alta impressiona, todavia o olho só percebe as folhas, os galhos e o tronco. As raízes – a fonte da vida da árvore – jazem ocultas bem fundo no chão.
Feuerbach


Índice
Pág.

Dedicatória 1
Índice 3
Prólogo 4
Capítulo I: Pereira Rangel 7
Anexo 1: Vila Rica, evolução urbana 51
Anexo 2: Testamentos, a influência do catolicismo 52
Anexo 3: Testamento de António Pereira Rangel 54
Anexo 4: Inventário dos bens deixados por António Pereira Rangel 59
Anexo 5: Condecorações Militares 87
Anexo 6: O Regimento de Infantaria de Linha nº 16 na Guerra Peninsular 90
Anexo 7: O Regimento de Infantaria 16 em 1820 111
Anexo 8: Tabela de vencimentos de Oficiais do Exército, ano de 1815 124
Capítulo II: Rangel de Macedo 125
Capítulo III: Valle 146
Anexo 1: Libreto do “Viaggiatori rídiculo” 165
Anexo 2: Lista das despesas efectuadas por Bruno José do Valle, em Itália 166
Capítulo IV: Faria 167
Anexo 1: Os banhos das Caldas da Raínha 204
Capítulo V: Outros Faria (Rangel, Gomes, Valdez) 205
Anexo 1: Jornal “O Civilisador” 221
Anexo 2: Jornal “A República” 222
Capítulo VI: Os Estrangeiros (Osternold, Donnadieu) 223
Anexo 1: A Divisão Auxiliar a Espanha 237
Anexo 2: Admissão à Irmandade de Santa Cecília 240
Anexo 3: Expostos e engeitados 241
Anexo 4: Entrega de um exposto 243
Capítulo VII: Sousa 244
Capítulo VIII: Sousa Machado 251
Capítulo IX: Faria de Sousa 265
Anexo 1: Jornal “O Occidente” 294
Anexo 2: Expedição a Moçambique, 1915 297
Album fotográfico 301
Documentos em fac- simile 326
Epílogo 341
Referências bibliográficas 342
Fontes 344
    
Prólogo

Oeiras, 15 de Fevereiro de 2010, dezanove horas.

Acredito que quando a vontade nasce é o momento certo para agir.

Foi o que acabou de acontecer. A ideia apareceu sorrateira, enquanto emerso em outros pensamentos; após brevíssimo momento de reflexão sentei-me frente ao computador, passei os olhos pelas minhas notas genealógicas, e os meus dedos começaram de imediato a pressionar as teclas, transformando em palavra escrita o que na minha mente já fervilhava.

Era chegado o momento de passar ao papel a história da minha família paterna.

Tenho consciência de que não vai ser fácil, mas felizmente, tempo, vontade e paciência não me faltam. É trabalho complexo tentar encaixar treze gerações, algumas centenas de indivíduos, de forma clara e perceptível. Não vai mesmo ser nada fácil.

Nestas linhas vão aparecer de forma talvez inesperada os apelidos Barros, Donnadieu, Rodrigues, Simões, Mendes, Gonçalves, Vale, Matos, Freire e muitos outros a par dos nossos velhos conhecidos Faria, Sousa, Rangel, Osternold.

Iremos calcorrear quase todo o nosso Portugal, incluídas as antigas terras de Vera Cruz, que também foram pisadas pelos nossos antepassados; lançaremos ainda o olhar até França e Alemanha, onde algumas das nossas raízes se radicam.

Curiosamente, do torrão natal, deste rectângulozinho, apenas não falaremos do Algarve, do Baixo Alentejo e do Trás-os-Montes profundo, as únicas regiões de que não nos chega (ainda) notícia de antepassados (as ilhas não contam). 

Uma pesquisa genealógica nunca está terminada. Quando menos se espera, ao simples virar de folha de um qualquer documento insuspeito, podemos deparar (o que já me aconteceu) com dados que nos lançam em novas demandas, ou na continuação das que considerávamos já terminadas.   

Estarei isento de erros? Espero bem que sim, por isso me esforcei. A pesquisa genealógica tem um perigo, os nomes; ao longo da sua vida os indivíduos eram conhecidos por nomes diversos, e disso temos como exemplo uma nossa antepassada que entre 1788 e 1808 foi Maria Joaquina Freire, Maria da Costa, Maria Estevão Freire, Maria Esteves e Maria Estevão! 

Mesmo um João (assim foi baptizado) podia na crisma mudar o nome para Ambrósio, e o pároco não o referir em aditamento ao seu assento de baptismo; como era louro, e de grandes melenas, ou a mãe se chamava Rita, e o pai já tinha falecido, quando casou passou a ser o João Louro, ou o João da Rita, mas quando lhe nasceu um filho, chamaram-lhe (o pároco até já nem era o mesmo) João Pinto (o apelido do pai), ou João Rita Pinto, e quando faleceu…se calhar era apenas o João Sapateiro, que era a sua profissão lá na terrinha. Parece piada mas acontecia, tenho-o documentado. 

E pior, na mesma terra podia haver vários indivíduos chamados João; por exemplo um João da Silva casa com uma Marias Dias (sem quaisquer outras referências), quem eram? Por vezes tudo isso agravado por múltiplos casamentos; enviuvaste? Azar, pois casa outra vez, e se possível depressa que os miúdos precisam de uma mãe que deles trate, enquanto tu te ocupas com a terra ou com o negócio, ou de um pai que traga para casa aquilo que se põe na mesa. Nem vou falar na mobilidade, do nasce aqui, casa ali, morre acolá. 

Sendo os assentos paroquiais a principal (não a única) fonte da pesquisa genealógica, calculem a dificuldade; é melhor ficar por aqui que isto é ponta de iceberg e haveria pano para mangas.   
     
Por esta e outras razões este não é um trabalho genealógico acabado, entendam-no como um ponto de situação face ao que até agora descobri, e quero partilhar convosco, a minha e também vossa ancestralidade.

Vou encarar de forma despreocupada este desiderato, e tentar usar uma linguagem simples, clara, sem floreados, tal como se estivéssemos a conversar num ameno fim de tarde (talvez que em Ferreira do Zêzere…).

Toda a informação que vos vou passar está documentalmente comprovada, pois de outra forma não me passaria pela cabeça divulgá-la, mas dispenso-me de aqui citar exaustivamente as fontes já que esta não vai ser obra para publicação.

Recorrerei frequentemente à transcrição parcial dos documentos que pesquisei, e constituem a base deste trabalho, de forma a fazer passar o sabor da época. 

Tentarei amenizar a leitura cortando-a com fotografias e ilustrações que ajudem a identificar pessoas, lugares, acontecimentos (embora também tencione incluir um anexo com algumas fotografias de espólio familiar). 

Em cada capítulo abordarei, com maior ou menor profundidade, a história conhecida de cada ramo familiar; sobre alguns apreciável informação encontrei, fruto quiçá da sua notoriedade social, sobre outros pela razão inversa, pouco consegui apurar.

Dos que se distinguiram no campo das artes, ainda hoje podemos admirar as suas obras; sobre os que optaram pela vida militar, as particularidades da actividade castrense enquanto paradigma de disciplina e organização, garantiram a conservação dos seus processos individuais, que hoje nos permitem reconstituir parcialmente as suas vidas; dos que na actividade mercantil tiveram o seu expoente, também a sua acção ficou documentalmente registada; contudo, daqueles que passaram por esta vida de forma simples, ganhando honestamente o seu pão dedicando-se à agricultura, aos mesteres, ou outras actividades anónimas, bem, desses ficaram os nomes e pouco mais.

Mas de todos eles somos um pouco, pois os genes que nos transmitiram determinaram o que hoje somos. A eles devemos o Ser. 

Que estas linhas os perpetuem na nossa memória e na das nossas gerações futuras.    

A capa que escolhi para este trabalho é a primeira página de um processo corrido em 1823, em que João António de Faria requereu que lhe fosse passada Carta de Sentença Civil atestando a sua limpeza de sangue. Este processo, na minha posse há dezenas de anos, encontrei-o perdido em casa dos meus avós paternos no meio de outros papéis sem importância; foi por causa dele, e por ele, que me interessei e iniciei na genealogia e agora posso deixar-vos esta Estória.    

Se me permitirem, aconselho que façam a leitura como se de um livro se tratasse, ou seja, a duas folhas.



Luís Filipe Duarte Faria de Sousa
                                                                                                 Coronel Admil. Ref.


Pereira Rangel



IMinho. A comarca de Valença é a origem deste nosso ramo familiar. Dos mais antigos não ficou praticamente memória; os livros paroquiais onde os seus baptismos, casamentos e óbitos foram assentes, o tempo e as vicissitudes da história acabaram por os desencaminhar ou destruir, e assim, os escassos elementos sobre eles conhecidos, recolhi-os nas Inquirições de genere daqueles que optaram pela vida eclesiástica. 

A Igreja, exigente relativamente aos que no seu seio procuravam o futuro, antes de os acolher procedia a diligências genealógicas, as inquirições de genere, como forma de se assegurar da sua (deles) necessária pureza de sangue, idoneidade moral e, pasme-se, capacidade financeira; é assim graças ao testemunho juramentado das pessoas mais antigas e honradas da freguesia, então inquiridas, nos é hoje possível conhecer os nomes e as actividades a que se dedicaram alguns desses mais distantes avoengos.

Pela inquirição de genere do padre João Fernandes de Barros, efectuada em 18 de Novembro de 1695, ficamos a saber que era neto paterno de Francisco Fernandes (o velho) e de sua mulher Maria Esteves, lavradores no lugar de Azevinhas, freguesia de S. Julião da Silva; e pela parte materna, neto de João de Barros (o moço), lavrador honrado que vivia de suas fazendas sem ter outro ofício, e de sua mulher Maria Afonso, moradores no lugar do Portinho, freguesia de São Pantaleão de Cornes.

Este padre João, nascido no lugar do Portinho, era filho de Francisco Fernandes (o moço) e de sua mulher Cristina de Barros, cujo matrimónio se celebrou em São Pantaleão de Cornes no dia 20 de Abril de 1666; teve pelo menos dois irmãos também nascidos no lugar do Portinho, o Francisco, que foi baptizado em 15 de Setembro de 1674, e o Agostinho baptizado em 19 de Maio de 1683. 

É do seu irmão Francisco que vem a nossa linhagem; o outro irmão, o Agostinho, acabou por também seguir a carreira eclesiástica (datando a sua Inquirição de Genere de 7 de Novembro de 1716), passando a ser conhecido por padre Agostinho de Barros Pereira. Talvez seja oportuno esclarecer desde já, que nos finais do século XVI se iniciou uma época de grande indisciplina no uso e transmissão dos apelidos, e que essa anarquia durou até ao início do séc. XIX; um indivíduo podia usar apelidos diferentes dos de seus pais e irmãos, indo buscá-los frequentemente ao pai, mãe, avós, tios, a pessoas sem relação parental (como os padrinhos de baptismos).

Seu pai, Francisco Fernandes (o moço), terá falecido em 12 de Junho de 1709 pois encontrei um óbito que refere que no lugar do Portinho “…faleceu da vida presente com os Sacramentos devidos Francisco Fernandes…não fez testamento e está enterrado dentro na Igreja junto ao Altar de Nossa Senhora do Rosário…”; à margem do assento está escrito que “…foi presente com treze padres…”, ou seja, que no seu funeral estiveram presentes treze padres. 

Mais uma achega, nos séculos XVII e XVIII a liturgia barroca revestia-se de uma grande solenidade, e o fausto que rodeava as exéquias, bem como o número de sacerdotes presentes no ofício, era sinal indicador da qualidade social do defunto, de tal forma que mesmo nos meios rurais, e especialmente entre os lavradores mais abastados, eram frequentes os ofícios com duas ou três dezenas de padres. Havia que ganhar o Céu.

Mas voltemos ao Francisco, de seu nome completo, Francisco Fernandes de Barros, que a partir deste momento passa a ser a nossa raiz. 

De uma ligação amorosa que teve com uma viúva que residia no lugar do Carvalhal, da freguesia de São Pantaleão de Cornes, chamada Páscoa Gonçalves, nasceu em 25 de Abril de 1718 um rapaz a quem foi dado o nome de António José; o neófito foi baptizado no primeiro dia do mês de Maio, como filho natural (filho de pais não casados) da Páscoa, não constando no assento de baptismo o nome do pai; mas a identidade deste, talvez impossível de esconder em terra em que todos se conheceriam, acabou por se impor como veremos.

Páscoa Gonçalves era filha de Pedro Gonçalves Rodel, lavrador do lugar da Berregã, e de sua mulher Ana Afonso, e foi baptizada em 4 de Abril de 1678; dela nada mais se sabe, a não ser que faleceu em 4 de Setembro de 1722 e foi “…enterrada no adro, perto da oliveira e fez testamento…”.

Ora o nosso Francisco Fernandes de Barros que tudo indica ter sido mestre pedreiro, razão pela qual tinha a alcunha de “Casas”, apesar do filho em comum, não fez questão de casar com a Páscoa, acabando por se perder de amores por uma tal de Maria Rodrigues com quem veio a casar; passado tempo embarcou para o Brasil levando a família “… sem que ficassem filhos...”, devendo por essa referência entender-se que todos os seus filhos (legítimos ou não) o terão acompanhado nessa aventura por terras de Vera Cruz.

Agora impõe-se um pequeno intervalo para referir que durante o século XVIII, milhares de portugueses cruzaram o Atlântico com o sonho de melhores dias na afamada região de pedras e metais preciosos do Brasil, as Minas Gerais; a maior parte deixou para trás família e amigos, que dificilmente voltariam a ver. Muitos eram mestres e oficiais em suas comunidades, com experiência em ofícios tão necessários para as vilas e arraiais mineiros; o Francisco terá sido um deles, mas fez-se acompanhar por mulher e filhos.
Dele não mais haverá notícia, a não ser talvez, a constante de um assento de óbito da paróquia de Cornes, que refere que “…Aos sette dias do mês de março de mil settecentos e cincoenta e tres anos vieram noticias falecera da vida presente em quatorze de julho de mil e settecentos e sincoenta e hum anos no Bispado do Rio de Janeiro Francisco Fernandes natural desta freguesia de Cornes e fez seu testamento e disposição e cumpridor António Fernandes que para constar fiz este asento que asigno dia mês e era ut supra o Abbade Manuel da Cunha Lima…”; talvez sim, talvez não, mas datas, e os nomes parecem plausíveis. Fica a hipótese.

A acreditarmos que o falecido era mesmo o nosso Francisco Fernandes (de Barros), o portador da notícia do seu falecimento poderá ter sido o seu filho António, pois a oportunidade do assento, e o facto de existir uma procuração por ele passada a um solicitador do Porto em 25 de Agosto de 1753, revela-nos que António Fernandes de Barros era já nesse ano assistente (morador) na freguesia de S. Julião da Silva, Valença. 

Antes de continuar talvez seja interessante vermos como era viajar por mar, no século XVIII, assim e de forma muito sucinta: 

- Os principais portos no Brasil eram os do Rio de Janeiro, de São Salvador da Baía, do Recife (Pernambuco), de São Luis do Maranhão e de Belém do Pára; no que toca ao Reino, e por ordem de importância (movimento/tonelagem) eram os, de Lisboa, Porto, Setúbal e Viana (do Castelo).

- A partir de 1649, ano da criação da Companhia Geral do Comércio do Brasil, o tráfego marítimo entre o Reino e a sua colónia do Brasil passou a efectuar-se “em conserva” como forma de garantir-se a segurança dos navios mercantes; estes deixaram de navegar isolados e passaram a ser escoltados por navios de guerra (naus ou galeões), em frotas que chegavam a agrupar algumas dezenas de navios; há referências a frotas de 12 a 33 navios. 

- Antes da travessia do Atlântico, os navios saíam dos diversos portos de origem e concentravam-se no de partida formando-se então o comboio; terminada a travessia, chegados a ponto considerado seguro, e pré-acordado, desfazia-se a conserva, e cada navio dirigia-se então para o seu porto de destino final.

- Na primeira metade do século XVIII, as frotas que partiam do Reino para os portos do Brasil faziam-no por norma em Abril as que tinham como destino a Baía e Pernambuco, e entre Março e Maio as que navegavam para o Rio de Janeiro. As que regressavam ao Reino chegavam a Portugal normalmente entre Outubro e Janeiro as que vinham da Baía, entre Julho e Setembro as provenientes de Pernambuco, e entre Agosto e Outubro as provenientes do Rio de Janeiro. Mas não era regra absoluta, frotas houve que partiram, ou chegaram a Lisboa, em outros meses do ano.

Dependendo das condições de navegação, mas principalmente dos ventos, o tempo de travessia podia demorar de mês, a mês e meio, mas nem isso era certo; a título de exemplo vos digo que uma frota de 38 navios demorou 66 dias na travessia, pois partiu de Lisboa às 14 horas do dia 22 de Outubro, e aportou na Baía às 16 horas do dia 26 de Dezembro de 1669; a causa, 25 dias de calmaria apanhada no golfo da Guiné. Outro exemplo, um outra frota composta por 21 navios, saíu da Baía e demorou 88 dias até entrar a barra do Tejo.

Mas voltemos aos nossos viajantes, o António Fernandes de Barros e sua família, adiantando já que o ponto de partida neste seu regresso ao Reino foi Vila Rica do Ouro Preto, na região de Minas Gerais.

 Até chegarem ao Rio de Janeiro, que na minha modesta opinião deverá ter sido o porto de embarque, tiveram antes que se aventurar pelo chamado caminho novo, a principal via de comunicação entre as Minas Gerais e a cidade do Rio, numa jornada de 10 a 15 dias por maus e inseguros caminhos a pé posto, ou em bestas de carga. Não terá sido fácil a aventura, para mais num grupo familiar que incluía uma mulher, e talvez até quatro crianças de tenra idade, já para não falar dos cabedais, o principal alvo da cobiça alheia. 

Quem no século XVIII tivesse que viajar pelos caminhos de Minas Gerais confrontava-se desde logo, com o medo constante de eventuais ataques, saques, e sequestros efectuados não só por escravos negros fugidos, mas também outros elementos marginalizados da sociedade, como índios e brancos criminosos, que se refugiavam no mato formando os chamados quilombos; não só atacavam as estradas, como também invadiam as casas dos moradores dos sítios e roças, em quadrilhas de vinte a trinta indivíduos armados.

O medo era de tal ordem, que muitos viajantes antes de empreenderem a jornada mandavam redigir os seus testamentos; e caso sobrevivessem a um eventual ataque durante o caminho, como forma de agradecimento pelo milagre, mandavam de imediato pintar os conhecidos ex-votos.

O caminho, apesar de chamado de novo, apenas o era pelo facto de ter sido aberto entre 1698 e 1711, em oposição ao velho que do Rio ia para São Paulo, e daí para as Minas Gerais; no seu diário, Caetano da Costa Matoso, um Juiz Ouvidor que em 1749 viajou do Rio de Janeiro para a região de as Minas, escreveu, já perto do fim da jornada que “…vinha já com algum desafogo, vendo que respirava e se estendiam ao longe os objectos de vista, deixando aquele afogado e melancólico caminho em que dez dias não via outra coisa senão o mato e as árvores imediatas a mim…”. 

Num outro relato o autor adjectiva o caminho, ou parte dele ainda na divisa do Rio de Janeiro, como “…fechado, apertado, sombrio, escabroso e cheio de lama, os rios caudalosos, formavam cachoeiras que na verdade eram autênticos precipícios…”, mas termina escrevendo que já perto das Minas Gerais, “…eram menos maus…”.

E às dificuldades naturais somavam-se as intencionalmente criadas pelo próprio homem; os moradores das roças e sítios localizados ao longo do caminho, chegavam de forma propositada a torná-lo pouco praticável, ou mesmo temporariamente impraticável, na proximidade das suas propriedades, como forma de obrigarem os viajantes a aí pararem, e se verem constrangidos a pedir e pagar hospedagem e alimentação. Isso mesmo o atesta uma carta dirigida pelo governador ao Capitão-Mor Garcia Rodrigues Paes: 


“…os moradores e roceiros do dito caminho têm a culpa das ditas queixas por serem os que de propósito conservam as ditas estradas intrasitáveis e trabalhosas para os passageiros, para que se demorem nas suas roças não só podendo consertar os caminhos, mas ainda atalhando nos morros que a fazem dificultosa. Desejando dar remédio a tudo o referido, pelo prejuízo que causará ao bem público a falta dele, ordeno ao coronel D. Rodrigues da Fonseca que obrigue aos moradores do Caminho Novo que vivem desde sua roça até o Paraibuna a consertarem os caminhos e assim mesmo fazerem atalhos nos morros para facilitar a passagem dos mercadores e mais pessoas que vem para essas Minas, notificando os que faltando a fazer os dito conserto como lhes prestar ordem serão expulsos das terras que possuírem e serão presos e condenados…”. 

Adiante. António Fernandes de Barros regressou rico. Como mestre pedreiro, ofício que certamente aprendeu com o pai, fez fortuna no Brasil; para além das poupanças obtidas com o exercício do mester, fez um casamento que lhe terá sido materialmente muito proveitoso. Pouco anos antes do seu regresso ao Reino, casou com D. Ana Rangel de Macedo, que em 1746 enviuvara de Diogo Alves de Araújo Crespo, como ele mestre pedreiro, mas dos principais de Vila Rica. 

Diogo Crespo vivia com a família (D. Ana e um filho) num sobrado atrás da capela de Nossa Senhora do Rosário (no Caquende), e era detentor de um importante património constituído por imóveis (7 casas que alugava, e uma roça com produção agrícola - feijão e milho - e criação de porcos), bens móveis, créditos, e vinte e nove escravos.

A título de curiosidade, leiam o que sobre ele se encontra escrito no livro "Sociedades, culturas e formas de governar no mundo português":

“…no final da vida, o pedreiro Diogo Alves de Araújo Crespo havia acumulado um montante de 5:216$407, entre casas bem localizadas, escravos, animais, ferramentas, móveis e créditos. Nada mal para um "pedreiro". Património conseguido graças ao seu trabalho e ao de seus oficiais, mas também às suas redes de sociabilidade, como as que ele mantinha com as autoridades e arrematantes locais. Especialmente com o seu compadre, o sargento-mor Manuel de Sousa Portugal e com o procurador do Senado no período de vigência do contrato, o sargento-mor Manuel da Costa Guimarães, que não só fiava algumas obras como nomeava os oficiais que deveriam fazer a louvação das obras arrematadas por Diogo Alves ..."

Diogo Crespo e Ana Rangel de Macedo tinham casado em 20 de Maio de 1746; no assento de casamento consta que a nubente tinha sido baptizada em Santo António de Itatiaia, e era moradora na Vila do Ouro Branco. Ana era filha do Capitão Manuel Martins Ruivo , um minhoto natural do lugar da Bagoada, em Vila Nova de Cerveira, e de uma brasileira, D. Catarina Escócia Sandoval. 

Não sei quando nem onde casaram os pais da Ana, mas é conhecido que para além dela tiveram mais três filhos, a Leonarda que nasceu em 9 de Junho de 1734, o Manuel em 3 de Abril de 1736, e a Ângela em 14 de Julho de 1738; crê-se que Ana terá sido a primogénita, e que terá nascido por volta de 1725, mas não existem os livros respeitantes a esses anos. 

O pai de Ana, Manuel Martins Ruivo, foi baptizado em 10 de Fevereiro de 1697 na igreja de Santa Marinha de Loivo, freguesia a que pertencia o lugar da Bagoada; era filho legítimo de Domingos Martins Ruivo  e de sua mulher Catarina Martins, neto paterno de Francisco Martins e Ana Martins, e neto materno Pedro Martins e Domingas Martins, todos naturais e moradores na freguesia de Santa Marinha de Loivo. Era irmão do padre Carlos Martins, cuja habilitação de genere tem a data de 23 de Julho de 1725. 

Numa outra Habilitação de Genere, desta vez de um seu neto, filho da Ana e de António Fernandes de Barros, consta que Manuel Martins Ruivo “…foi de tenra idade para o Brasil, onde casou e teve uma filha que casou com António Fernandes de Barros..."; contudo os testemunhos divergem, talvez fruto do tempo entretanto já decorrido, ou dss memórias se terem esvanecido, referindo uns que foi de "tenra idade" para o Brasil, outros que "foi moiço" sendo lavrador.

O estudo da ancestralidade de sua mulher, D. Catarina Escócia (de) Sandoval, será abordado em capítulo dedicado aos Rangel de Macedo, uma das mais antigas e importantes famílias do Rio de Janeiro.

Voltando ao António Fernandes de Barros. Este exerceu a sua actividade, como já sabem, em Minas Gerais , mais precisamente em Vila Rica, que a partir do ano de 1730 viveu o auge da extracção aurífera, verificando-se em conformidade um rápido e grande crescimento urbano. Esse facto obrigou o Senado da Câmara da Vila a intervir nas obras de grande porte, para fiscalização do cumprimento da lei, e nas obras de infra-estruturas vitais para a população, como o calcetamento de ruas ou a construção e manutenção de pontes e chafarizes; os contratos de arrematação das obras eram postos em concorrência pública, sendo o arrematante obrigado a seguir o risco e as condições que normalmente exigiam perfeição na execução através da técnica da cantaria. 

                                                                                   Vila Rica


Um documento conservado no Arquivo Público Mineiro, revela-nos que em 25 de Novembro de 1747 o António morava no Caquende, por detrás da capela de Nossa Senhora do Rosário (que foi demolida em 1785, sendo no local erigida a igreja de Nossa Senhora do Rosário); mas um artigo inserto na revista do Instituto do Património Histórico Arquitectónico Nacional (Brasil) refere que entre 1746 e 1747 ele morava em “...António Dias de Vila Rica …”. Cruzando as duas notícias, e face ao que já ficou dito, podemos assumir que terá assistido em António Dias enquanto solteiro, e que após se ter casado com D. Ana tenha passado a assistir na casa de morada de sua mulher, herdada do primeiro casamento.

No ano de 1747, ou seja, um ano após o falecimento de seu colega Diogo Crespo, o António comprou a fábrica deste, entendendo-se fábrica como o conjunto das ferramentas, equipamentos e escravos (4 calceteiros, 2 serventes e 1 fêmea); este aumento de capital permitiu-lhe entrar para o rol restrito dos arrematantes dos contratos de conservação e consertos de calçadas, pontes e quartéis, que constituía o grande e apetecível bolo de obras públicas em Vila Rica. 

Entre as obras que lhe foram sendo arrematadas posso referir a ponte do Padre Faria situada junto à capela do mesmo nome, que lhe foi adjudicada em 30 de Outubro de 1750; o chafariz da Glória , em parceria com António da Silva Herdeiro, cuja construção se iniciou em 12 de Agosto de 1752; o chafariz do Caquende, também conhecido como do Rosário; a “…nova rua do beco que vay p.ª santa Quiteria…” (não sei que beco, mas Santa Quitéria é hoje o local da Praça Tiradentes); as obras dos paredões da rua dos Quartéis; as obras da ponte de madeira, e da calçada de Santa Quitéria, em Padre Faria; uma casa “…que está à direita da Casa da Câmara…”; as obras que se realizaram na rua principal na ocasião da aclamação do Rei D. José I; a construção de um baldrame  de pedra por baixo da parede da sacristia da igreja de São José, pelo qual recebeu 3$600 réis.   



Como curiosidade note-se esta transcrição sobre os pagamentos realizados pela Irmandade da igreja de São José aos artífices que nela trabalharam: 

“…Excepcionalmente, em menos de meia dúzia de casos, os pagamentos, sempre feitos em ouro, nos tempos coloniais, foram efectuados em réis. No inventário dos bens da irmandade figura a balança em que o ouro, à vista do credor, era pesado em oitava e suas frações, e em vintens. Trinta e dois (32) vintens formavam uma oitava. Esta, por esse tempo, era cotada em Vila Rica a 1$200 rs. Um vintem representava, portanto, 37 réis e meio ($037,5)…”.  

António Fernandes de Barros para além da sua função como Mestre Pedreiro, também desempenhou outras, conotadas com o seu ofício, pois foi escrivão dos pedreiros, cargo para que foi eleito em 1750, e de Juiz dos mesmos em 1751; a função de Juiz dos pedreiros revestia-se de importância primordial, pois a lei vigente (Camarária) estabelecia que a primeira obrigação de um candidato ao título de oficial mecânico, era prestar exame diante de dois juízes do respectivo ofício, para posteriormente, se aprovado, poder solicitar à Câmara Municipal a respectiva carta de exame, ou carta de habilitação, sem a qual não podia exercer:

“…que havendo consideração a que muitos oficiais de pedreiros e carpinteiros tomam obras grandes e pequenas de empreitada sem serem examinados pelos seus juízes do ofício […] por cuja falta de examinação fizeram muitas obras imperfeitas em prejuízo dos donos delas, por cuja razão ordenamos que nenhum oficial dos ditos ofícios acima declarados não tomem obras de empreitada por pequena que seja sem serem examinados pelos juízes dos seus ofícios […] e incorrerão nesta pena os juízes dos ditos ofícios que por amizade deixarem trabalhar os ditos oficiais sem serem examinados…”.     

Já tive oportunidade de vos referir que se desconhecem os motivos do seu regresso, talvez saudades, ou talvez, se achasse suficientemente rico para voltar, talvez… 

Pouco depois de ter chegado ao Reino, comprou a António Malheiro Bacelar, Capitão-Mor de Valença, a quinta do Barral na freguesia de São Julião da Silva; aí passou a residir com a família, a saber, a sua mulher Ana, e os filhos nascidos no Brasil, a Ana, o António, e a Maria. Não encontrei qualquer referência ao enteado. Foi aí que nasceram, em 1754 e 1755, os seus dois filhos mais novos, o Joaquim José, e o João Bento. 

Por falta de documentação suficiente não me foi possível recriar o que terá sido a sua vida nas verdejantes terras minhotas, pois apenas encontrei dois documentos fidedignos, que podem levantar uma pontinha do véu, são eles:

-As Memórias Paroquias de 1758 , em que o pároco da freguesia refere que António Fernandes de Barros era patrono da capela de Santo António que ficava contígua à sua casa de morada, a Casa e Quinta do Barral. Aproveito o balanço para referir que em 17 de Dezembro de 1760, o António obteve uma provisão para nessa capela colocar um confessionário, justificando a necessidade com a distância a que ficava a igreja paroquial, e os maus caminhos que era necessário percorrer, especialmente nos tempos mais invernosos. Esta capela tinha sido mandada erigir por António Malheiro Bacelar, que para o efeito obtivera a necessária provisão de licença em 22 de Agosto de 1711, tendo a capela sido benzida em 10 de Dezembro de 1742. É importante referir que estes patronos constituíam uma elite representativa da alta sociedade da terra, pelo lugar e papel que as ditas capelas tinham na sociedade e religiosidade da época;

- A habilitação de genere do seu filho Joaquim José datada de 16 de Janeiro de 1778, na qual as testemunhas juradas aos santos Evangelhos, afirmaram que o pai do habilitando, (o António Fernandes de Barros), tinha na freguesia de Cornes “…muitos parentes clérigos e lavradores honrados, que se tratam à lei da nobreza…” e que era (ou tinha sido) Alferes de auxiliares.  

Os Terços de Infantaria auxiliar tinham sido criados em 1642, no período inicial das guerras da Restauração em cada uma das comarcas do Reino, com o intuito de servirem como um reforço de 2ª linha; passaram em 1796 a denominar-se Regimentos de Milícias, sendo que em ambos os períodos, e é isto que nos interessa sobremaneira saber, os seus oficiais eram recrutados “…entre a gente da governança das terras…”. 


Assinatura de António Fernandes de Barros em 1753

Relembro-vos, o António Fernandes de Barros e a sua mulher Ana Rangel de Macedo tiveram cinco filhos: 

A Ana que nasceu em Vila Rica, e aí foi baptizada no dia 15 de Março de 1748, sobre quem não obtive mais informação. 

O António que também nasceu em Vila Rica, e lá foi baptizado no dia 17 de Setembro de 1749, na freguesia de Nossa Senhora do Pilar do Ouro Preto; foi ele que veio a tornar-se no elo que nos liga a estes antepassados.

A Maria igualmente nascida em Vila Rica, onde foi baptizada em 13 de Outubro de 1751; em idade adulta usou o nome de Maria Rangel de Macedo, e casou em 3 de Fevereiro de 1780 com Teotónio Dantas da Gama, natural de Sam Paio de Agua Longa, concelho de Coura. Teve descendência em pelo menos cinco filhos, o José Ricardo Dantas da Gama, que em 1820 vivia de seu negócio, e residia em Lisboa em casa do seu, então, já falecido tio António Pereira Rangel, e quatro meninas que aparecem contempladas no testamento do mesmo tio, que lhes legou “...os bens de raiz que na província do Minho lhe pertenceram por óbito de meus pais…”.

Os dois filhos mais novos do António e da Ana, já nascidos na Quinta do Barral, foram baptizados na igreja de São Julião da Silva, o Joaquim José em 3 de Fevereiro de 1754, e o João Bento em 31 de Dezembro de 1755; em idade adulta ambos usaram indistintamente os apelidos, Pereira Rangel ou Pereira Rangel de Macedo.

O porquê ou onde foram buscar o apelido Pereira é uma incógnita; o indivíduo mais próximo relacionado com a família que consegui encontrar tendo esse apelido, foi o padrinho de baptismo do Joaquim José, que se chamava Manuel Pereira dos Santos, e era Familiar do Santo Ofício. 

O Joaquim José seguiu a carreira eclesiástica, viveu na Quinta do Barral, faleceu em 26 de Outubro de 1834, sendo sepultado na igreja de São Julião da Silva. 

O João Bento, esse, seguiu a carreira militar; em 7 de Março de 1782 contando vinte e sete anos, e sendo furriel do Regimento de Artilharia do Porto, recebeu de D. Maria I a Mercê Real do “…posto de Tenente da mesma artilharia do Regimento de Goa, que servirá por tempo de seis anos e o mais que houver por bem e servindo à satisfação do mesmo, findo o dito tempo terá o exercício do mesmo posto nas Tropas deste Reino com o qual posto haverá o soldo que lhe tocar, pago na forma das suas Reais Ordens e gozará de todas as honras e previlégios, liberdades isenções e franquezas que na razão dele lhe pertencerem…”. Nada mais sobre ele consegui recolher, a não ser que teve descendência, pois uma sua filha de nome Ana Joaquina é mencionada nos testamentos dos avós (dela), e residia em 1816 na casa de seu tio António Pereira Rangel. Terá o João Bento falecido na Índia?
   
Regressemos mais uma vez ao António Fernandes de Barros, para o vermos no primeiro dia do mês de Agosto do ano de 1786, em casa de seu genro Teotónio Dantas da Gama, a mandar redigir o seu testamento; é um documento de difícil leitura por se encontrar muito deteriorado, e pouco legível, esta é a sua transcrição possível:  

“…Em nome de Deus Ámen. Ao primeiro do mês de Agosto de mil e setecentos e oitenta e seis anos nas casas de morada e quinta de Teotónio Dantas da Gama do Valelongo freguesia de São Paio de Água longa deste concelho de Coura adonde se achava António Fernandes de Barros da quinta do Barral da freguesia de São Julião da Silva termo de Valença e casado com Dona Anna Rangel de Macedo ali na dita quinta do Valelongo me pediu a mim José da Cunha lhe escrevesse sua manda e testamento o que eu lhe escrevi na forma que ele ditou que estava de saúde e com todo o seu perfeito juízo como sempre a teve primeiramente disse ele testador que quando Deus Nosso Senhor for servido chamá-lo desta presente vida pedia à Virgem Nossa Senhora […]  sua […] para com seu unigénito Filho para que […] Capela de Nossa Senhora do Rosário na mesma […] e que deixa de esmola para a mesma Senhora mil e seiscentos réis por […] ser enterrado na dita Capela e que será enterrado com uma confraria de trinta Capelães e que deixava a cada Padre que acompanhar seu corpo de sua casa ante a sepultura setenta réis com a obrigação de lhe rezarem dois responsos cada um == Item disse deixava mais três ofícios pela sua alma de vinte Padres cada um == Item disse ele testador deixava pela sua alma cem Missas esmola de cento e vinte ditas por uma só vez == Item disse deixava pelas almas de seus Pai e Mãe dez Missas com esmola de cem réis cada uma e ditas por uma só vez == Item disse deixava pelas almas de seus irmãos e irmãs doze Missas e pelas almas de seus tios e tias e primos outras doze esmola de cem réis ditas por uma só vez == Item disse que deixava pelas almas dos escravos e escravas que lhe morreram outras doze Missas esmola de cem réis cada uma por uma só vez ==  Item disse deixava pelas almas do purgatório duzentas missas esmola de cem réis por uma só vez == Item disse deixava a Nossa Senhora do Rosário seis Missas ditas no seu altar esmola de cento e vinte réis por cada uma e por uma vez somente==Item disse ele testador que tinha disposto para a sua […] que agora dispunha […] que seus herdeiros comprarão uma vestimenta preta para a Capela de Santo António do Barral == Item disse ele testador que deixaria a sua neta e afilhada filha de Teotónio de Antas seis mil e quatrocentos == Item disse ele testador que deixava a sua neta Dona Ana  filha de João Bento seis mil e quatrocentos == Item disse ele testador que deixava a seu neto filho de seu filho António Pereira Rangel de Macedo na Cidade de Lisboa seis mil e quatrocentos réis… …revogava outro qualquer testamento ou codicilo que tivesse feito e que só queria que este tivesse vigor e validade e que pedia a todas as justiças de Sua Real Magestade tanto eclesiásticas como seculares lho façam cumprir e guardar tudo e tão cumpridamente como nele se contém e declara e declara ele testador que pedia muito de morte a sua mulher Dona Ana Rangel de Macedo quisesse pelo amor de Deus ser sua testamenteira e dar cumprimento ao […] e na falta dela o seu filho o padre Joaquim Rangel de Macedo que lhes deixa pelo seu […] seis mil e quatrocentos a qualquer deles que for seu cumpridor e que pede também muito de mercê ao Padre Francisco […] do Carvalhal queira ser seu testamenteiro e procurador e que da […] mais que chamava por seus herdeiros a seus filhos que […] em igual parte da sua respectiva herança e que tinha disposto tudo na forma acima declarado […] supra que assinou…”

O testamento é do tipo generalizado na época , revelador do medo supersticioso perante a morte, e da forma como então se procurava garantir a entrada no Reino dos Céus (não é uma crítica, é uma constatação) ao disporem os testadores das suas terças, distribuindo-as em esmolas à igreja, aos sacerdotes encarregues de dizer as missas encomendadas, aos pobres que acompanhassem o seu corpo, etc. 

Feitas as suas últimas disposições, terá aguardado serenamente, até que passados sete anos, no dia 3 de Dezembro de 1791, na sua quinta do Barral faleceu “…da vida prezente com todos os Sacramentos…e foi sepultado dentro desta igreja (de São Julião da Silva) aos cinco dias do dito mês e anno…”. 
A sua viúva, D. Ana Rangel de Macedo, sobreviveu-lhe oito anos, faleceu com todos os sacramentos no dia 21 de Outubro de 1799, sendo também ela sepultada na igreja de São Julião da Silva. 

Seis anos antes, em 5 de Novembro de 1793, tinha mandado redigir o seu próprio testamento, “…nas casas de morada de Donna Anna Rangel viuva que ficou de Antonio Fernandes do Barral freguezia de São Julião da Silva do termo e commarca de Vallença adonde eu o Padre Francisco Vaz Marinho da Costa da mesma freguezia fui a rogo da dita Donna Anna Rangel e andando a pé mas oprimida de molestias com perfeito juizo me pedio lhe escrevesse e fizesse o seu testamento para bem da sua alma…”.

O seu testamento também segue a prática, pois em metade dele (ou quase) fez a sua encomendação, e na restante dispôs do seu legado; dele apenas faço a transcrição das passagens que considerei mais interessantes: 

“…que sendo Deus servido levalla seu corpo fosse amortalhado em hum avito de freira e sepultado na Capella da Senhora do Rosario da sua freguezia e seu cadaver seria depositado na sua Capella de Santo Antonio e que se daria de esmola cento e vinte a cada hum que a levassem para a Igreja e aos pobres que assistirem […] se dava vinte reis a cada hum e que se daria mil e seiscentos de esmola para ser sepultada na Capella da Senhora e disse que se farião tres officios cada hum de vinte Padres e satisfarão fazendo hum officio geral que satisfaça todo o numero destes officios e disse que pella sua alma deixava trezentas missas…deixa todo o seu ouro do pescoço a sua nepta Anna Joaquina filha de João Bento e disse que deixava a Maria Fernandes mulher de Verissimo Gonçalves que tinha sido sua moça hua saia e huas roupinhas de uzo em bom uzo e disse mais ella testadora que deixava a sua vinha chamada da Veiga […] que fora abaliada em quarenta e cinco mil reis a seu filho o Padre Joaquim José Rangel para que desfrute emquanto vivo e que por morte delle a deixava a sua nepta Anna Joaquina filha de seu filho João Bento Rangel e que caso a dita sua nepta não tome estado e morra sem filhos tornava este legado a quem pertencer…deixava ao dito seu filho o Padre Joaquim o seu goardaroupa que esta na sala que consta de duas gavetas e porbaixo caixão e mais lhe deixa hua duzia de guardanapos franceses e dez outros e duas toalhas grandes hua francesa e outra tecida ca e hua colxa  e duas toalhas de renda de […] e quatro lençoens de linho e quatro de estopa e mais hum aparelho de prata garfo e colher e tudo quanto se achar no guardaroupa no seu falecimento disse deixava a seu filho Padre Joaquim Rangel e disse mais deixa a terça parte da adega para a parte do norte desde a segunda trave para diante a seu filho o Padre Joaquim Jose Rangel enquanto elle vivo e por morte delle  tornava a dita adega aquem for senhor da terça…que dispois de satisfeito tudo a vem dalma e legados nomiava a todos os seus filhos por seus universais erdeiros…”.

É de supor, face ao seu legado, que a relação mais próxima fosse com seu filho padre Joaquim que presumo com ela vivesse e dela fosse arrimo; também a Maria, já casada, e possivelmente residindo em Agualonga é contemplada, pois no testamento consta que “…todo o mais terço o deixa a sua filha Donna Maria cazada com Teotonio de Andrade que posto lho tinha doado na escritura de dote esta a considerava por falta…”. 
Curiosamente o João Bento (talvez ainda pelas Índias), e o António (que residia em Lisboa) não são particularmente contemplados na disposição da sua terça; o mesmo se diga dos netos, pois no testamento apenas é contemplada a Ana Joaquina (filha do João Bento), sendo que também já eram nascidos seis dos filhos do António.

A igreja de São Julião, embora junto à estrada, encontra-se quase num ermo pelo que com o intuito de se evitarem possíveis furtos de imagens sacras, fora das horas de culto encontra-se encerrada, à semelhança do que se passa por este país fora; em 2009, o Abade da igreja de Fontoura (freguesia limítrofe) amávelmente cedeu-me a chave da igreja, que assim pude visitar. As obras de recuperação a que ao longo dos tempos foi sendo sujeita, deram-lhe um ar renovado mas apagaram as suas memórias, pelo que não encontrei vestígio do local de repouso destes nossos antepassados.


                                                     Igreja de São Julião da Silva

E é chegado o momento de uma passagem de testemunho. Até agora vimos que estes nossos antepassados usaram de forma simples, ou composta, os apelidos Barros, Rodrigues, Fernandes, Afonso, Esteves, Gonçalves, Martins Ruivo, Sandoval e Rangel de Macedo, e que com a última geração nasceram os Pereira Rangel de Macedo, ou simplesmente Pereira Rangel.

A partir daqui a nossa referência passa a ser o filho mais velho do António Fernandes de Barros e de D. Anna Rangel de Macedo, o António Pereira Rangel; curiosamente todos os documentos que a ele respeitam não referem o apelido Macedo, não o deve ter usado, e portanto não o passou à sua descendência. 

A história do António começa com o seu processo de casamento corrido em 1774. Nele constam factos que são já do nosso conhecimento, como sejam, que nasceu nos estados da América, que veio para o Reino de muito tenra idade, indo residir para a freguesia de São Julião da Silva, mas também algo de novo, que com cerca de doze anos veio para Lisboa passando a morar na freguesia de São Julião.

A sua vinda para Lisboa poderá ter estado relacionada com a necessidade de aprender um ofício, junto de parente, ou de alguém relacionado com a família, como era então costume; num colóquio realizado no Palácio Fronteira sobre os negociantes de Lisboa, seus padrões de recrutamento e percursos sociais, ou seja, suas origens geográficas e relações socioprofissionais, na segunda metade do século XVIII, foi apresentada uma comunicação que pode fazer alguma luz sobre as razões que o poderão ter trazido até à capital, e do que poderá ter sido a sua vida até à idade adulta, sendo que a narração dos seus futuros sucessos nos vai mostrar que se enquadrou no perfil apresentado: 

“…só 37% dos homens de negócios da capital eram naturais de Lisboa…pelo contrário, grande parte dos negociantes vinham do Minho. Eram quase tantos (35%) quanto os naturais de Lisboa e mais numerosos ainda (49%) eram os que tinham pai ou avô minhoto…mais de um terço dos negociantes de grosso trato tinham, pelas suas origens familiares (pais ou avós), uma relação próxima com o mundo dos ofício…as origens sociais, familiares, dos negociantes demonstram que, para a larga maioria, a obtenção desta qualidade significa o êxito de uma trajectória social ascendente…alguns vinham para a companhia de parentes (43% dos casos que conhecemos) que já tinham iniciado uma carreira comercial, eram homens de negócios ou, mais frequentemente, mercadores, de quem eles começavam por ser caixeiros…a sua vida na cidade podia começar pela aprendizagem ou pelo exercício de um ofício mecânico, mas era frequente a sua passagem pelo lugar de caixeiro. Eram empregados de mercadores de loja aberta e depois sucediam ao patrão na mesma loja ou punham outra por sua conta, até acumularem os recursos suficientes para se lançarem no grosso trato…Também podiam transitar das lojas onde vendiam para o escritório de um negociante, que mais tarde lhes dava participação nos tráficos da casa, abrindo-lhes a porta do grande comércio…”.

Estou numa de acreditar que a (comprovada) ligação familiar dos Rangel de Macedo aos Sodré Pereira, poderá estar na base da vinda do António para Lisboa, mas até encontrar documentação comprovativa vou ficar por aqui quanto a esse assunto.

Avancemos alguns anos, até à data do seu casamento, que se celebrou em Lisboa no dia 11 de Maio de 1774 na freguesia de Santa Cruz do Castelo, onde então morava aquela que ia ser sua mulher; contava ele vinte e cinco anos, e a noiva, Luísa do Nascimento, quinze! Não será despiciendo referir que no sumário matrimonial, o António deixa claro que pretende casar “…por lhe dever a sua honra e descargo de sua consciência…”. Luiza tinha sido baptizada em 5 de Fevereiro de 1759 na igreja de Santa Engrácia, como filha legítima de Francisco da Costa Machado e de sua mulher Josefa do Nascimento.  

Francisco da Costa Machado era um filho natural, ou seja, nascido de uma união de pais solteiros, de Bento da Costa Barros e de Senhorinha Machada, e foi baptizado na freguesia de São Pedro de Atei, em Mondim de Basto. Pela leitura do seu sumário matrimonial corrido em 17 de Fevereiro de 1745, ficamos a saber que tinha trinta e sete anos, o que nos dá uma aproximação ao ano do seu nascimento, que assim deverá ter ocorrido por volta de 1708, e também que era criado do Desembargador José Bostoque, morador ao Campo de Santa Clara. 


                                       Assinatura de Francisco da Costa Machado em 1745


A sua mulher, Josefa do Nascimento, essa foi baptizada em Lisboa na freguesia de Santa Engrácia no dia 27 de Maio de 1728, como filha legítima de Francisco Rodrigues, natural e baptizado na freguesia de São Pedro de Britelo, em Celorico de Basto, e de sua mulher Isabel Maria, natural e baptizada na freguesia de Nossa Senhora da Corredoura, em Lamego, os quais tinham casado em Lisboa na freguesia dos Mártires. 

A sua ancestralidade não está estudada pois não existem registos dos casamentos celebrados na freguesia dos Mártires em datas anteriores a 1756, uma vez que os livros paroquiais desapareceram, supostamente destruídos no terramoto de 1755.

Estes nossos antepassados, Francisco e Josefa, faleceram em Lisboa na freguesia de São Julião, e segundo os seus assentos de óbito moravam no Largo de Pelourinho (penso que poderiam estar a residir em casa de sua filha, Luísa); a Josefa faleceu no primeiro dia do mês de Agosto de 1790, e o Francisco em 28 de Outubro de 1792, tendo sido sepultados na igreja paroquial de São Julião. 

Sobre o António Pereira Rangel existe muita documentação arquivada na Torre do Tombo, e seria por demais exaustiva a enumeração de todos esses documentos, que pesquisei, e dos quais guardo cópias, ou transcrições no meu arquivo pessoal; para não tornar maçuda esta conversa apenas os abordarei apresentando-os cronologicamente, na medida em que os considere relevantes para caracterizar o seu percurso familiar, profissional, e social.

Começo pelo dia 17 de Agosto de 1789, data em que tendo tomado conhecimento de se encontrar vago um lugar de Moedeiro do Número dos Cento e Quatro (Casa da Moeda de Lisboa), o António requereu que o mesmo lhe fosse concedido; no requerimento apresentou-se como sendo Negociante da Cidade de Lisboa, e residir no Largo do Pelourinho. Curiosamente a Provedoria do Cabido dos Moedeiros, ao instruir o processo isso corrigiu, referindo que “…não hé negociante como alega no seu requerimento mas sim Mercador de vinhos, consta-nos ser abonado e viver abastado bem respeitado entre os homens bons e sem nota no seu credito…”. E corrido o processo de forma favorável, recebeu em 7 de Dezembro a respectiva Carta de Posse.

Mas quem eram estes Moedeiros? Que vantagens auferiam? Segundo o que consegui apurar constituíam um “…certo número de indivíduos que sem despeza da Real Fazenda servião nos laboratórios, Officinas, e outros misteres da Casa da Moeda…”, remontando a sua existência ao reinado de D. Dinis. 

Embora não constituindo uma fonte directa de rendimentos, o cargo de Moedeiro do Número dos Cento e Quatro era uma função apetecível pelas regalias e isenções de que gozavam os seus membros; se não, vejamos algumas delas (atenda-se no entanto ao longo período que decorre entre 1362 e este ano de 1789):

“…que não paguem Portagem…que sejão isentos das servidões do Conselhos e do pedido do Rei…que ninguém pouze com elles em suas pouzadas em que elles morarem…que não lhes tomem sua roupa, lenhas…nem outras couzas nenhumas contra sua vontade…nem sejam constrangidos a hirem servir por mar nem por terra…que o seu Conservador seja juiz nas suas causas assim cíveis como crimes de qualquer condição…que se lhes dêem mancebos e mancebas que bem cumprão para os servir…que se lhes dêem casas de aposentadoria que nellas morem ainda que estejam outros de aluguer…que possão trazer armas…que os filhos solteiros dos ditos moedeiros, creados e escravos gozem dos mesmos previlegios…que as viúvas enquanto mantiverem sua honra gozem dos previlegios de seu marido…que não paguem coimas nem paguem dizima…”, etc. 

Em 18 de Junho de 1790 fez um contrato de Emprazamento em três vidas, de um Prazo sito no local do Caramujo, na actual Cova da Piedade, pelo qual pagava anualmente “…de uma só vez em dias de natal…” a renda de 32.453 réis. 

Saibam que o emprazamento era a forma mais corrente de acesso à terra, no Portugal tardo-medievo e moderno, dele havendo duas modalidades: os prazos perpétuos, e os prazos de vidas que eram os mais comuns; nestes últimos, o nosso caso, o enfiteuta era a 1ª vida, podendo nomear o seu sucessor, 2ª vida, e este um terceiro, a 3ª vida. Resumindo, um contrato de emprazamento concedia ao enfiteuta (o que alugava) o domínio útil da terra, ou seja, o direito da sua exploração, em troca de uma renda anual paga ao senhorio, continuando este último na posse plena da propriedade, mas não do seu usufruto. 

Em 27 de Janeiro de 1800, sendo referido ser homem de negócios, e morar no lugar do Caramujo, comprou um prazo composto por “…uma vinha com seu bocado de terra e uma terra de semear pão…” sito no lugar do Pragal, pela quantia de 200$000 réis.

Em 9 de Janeiro de 1801 comprou “…uma vinha com seu bocado de terra que tem suas oliveiras, sita defronte da quinta chamada Olho de Vidro…”, pela quantia de 600$000 réis.

Em 27 de Janeiro de 1801 comprou “…humas terras com suas Cazas térreas e hum moinho de vento arruinado no dito logar do Pragal…”, pela quantia de 600$000 réis.  

Em 16 de Junho de 1801 comprou “…huma terra no citio do Juncal distrito do lugar do Pragal…”, pela quantia de 100$000 réis.

Fica-se com a nítida sensação de que o António andava a construir o seu império, adquirindo terras e mais terras, curiosamente, todas nos termos da Vila de Almada. 

Atente-se agora ao que era a paisagem rural e urbana de Almada no século XIX: 
“…desde a Idade Média diversas culturas eram característica da paisagem rural, cereais, pinheiro, vinha, figueira...no litoral, as praias e os pequenos portos de pesca artesanal e intermediários na saída de produtos da região. É sobretudo a via fluvial do Tejo (e afluentes) que se reveste de grande importância, pois por ela iriam ter a Lisboa diversos produtos, de princípio excedentes da produção local, depois até oriundos do Alentejo, Beira e parte da Estremadura, destinados à alimentação e exportação em função do grande mercado de Lisboa. No interior, lugarejos ou povoações, casais isolados e quintas senhoriais, courelas e azinhagas. A área rural era mais importante do que a urbana...a Mutela não passava de um pequeno grupo de casas; o Caramujo, uma restinga de areia; o lugarejo da Piedade algumas quantas casas junto à Igreja...A par do desenvolvimento do comércio de vinho com o Brasil e África assiste-se a uma notável azáfama de tanoeiros. Mas os armazéns de vinhos, vinagres e azeites mantinham-se ligados ao comércio e actividades agrícolas da região...”.

Em 19 de Maio de 1801, D. João, Príncipe Regente de Portugal, concedeu-lhe a Mercê do Hábito de Nosso Senhor Jesus Cristo, com uma tença de 12$000 réis, tendo sido dispensado das necessárias provanças e habilitações. 

A concessão do hábito da Ordem de Cristo, que tinha começado por ser um privilégio de poucos, estava já de tal forma banalizada, que no século XVIII era desejada não pelo seu mérito, mas porque não a ter podia ser considerado um estigma, ou sinal de inferioridade. Em finais dos anos de setecentos, o embaixador de França comentava escandalizado, que era tão vulgar a sua concessão que era usada por “…servidores e criados da aristocracia, como pelos seus amos e até pela soberana…”.   

Retomando. Os cabedais não deviam faltar ao António Pereira Rangel, pois era beneficiário de várias tenças inicialmente atribuídas a terceiros, que por razões pessoais (acredito que o fizessem como forma de ressarcimento de dívidas por eles contraídas, ou como aval para créditos) a elas renunciaram em favor dele, e de sua mulher D. Luiza do Nascimento ; a título de exemplo, no ano de 1791 tornou-se beneficiário de uma tença de 50$000 réis anuais, concedida ao Ajudante da Praça de Sagres, José de Mello da Cunha, bem como de uma outra de 60$000 réis, atribuída ao capitão do Regimento de Lippe, Frederico Manuel Schiasso. 

Em 1805 intentou duas acções judiciais a fim de tentar reaver importâncias que tinha emprestadas; uma na Casa da Suplicação demandando D. António Soares de Noronha, pela quantia de 1.600$000 réis, que tinha emprestado a um seu irmão entretanto falecido, e outra no Desembargo do Paço contra a viúva de José César de Faro e Vasconcelos, da Vila de Torres Vedras, no valor de 144$000 réis.

A confirmar a sua riqueza está também o facto de no ano de 1805 ser uma das trinta e sete personalidades que tinham camarote reservado no Real Teatro de S. Carlos de Lisboa, sendo que entre elas se encontravam doze titulares de nobreza, três legações diplomáticas estrangeiras, o Senado de Lisboa, e o então embaixador de França, o general Jean-Andoche Junot. 

A partir do livro da Décima da Cidade de Lisboa ficamos a saber que em 1805 residia na Praça do Pelourinho, hoje Praça do Município, no sobrado (3º andar) de um dos prédios ainda hoje aí existentes, bem como também aí trazia arrendada uma loja (com taberna); não me foi possível a identificação cabal de qual o edifício, pois mesmo no arquivo do Tribunal de Contas não souberam como o identificar a partir dos registos consultados. Na globalidade estes arrendamentos representavam um encargo anual de 700$000 réis. No mesmo livro encontra-se igualmente registado que tinha 4 criados, e uma sege  com a respectiva parelha.  

Como iremos ver noutro capítulo, a sua vizinhança com alguém de quem ainda não falámos, foi determinante para a nossa história familiar.

No dia 25 de Abril de 1812 aparece-nos a primeira venda que fez de um bem de raiz, pois com sua mulher D. Luiza do Nascimento, vendeu pela quantia de 1.600$000 uma vinha e terra com árvores de fruta, com todos os seus pertences, entradas, saídas, serventias e logradouros, situada no sítio da Carvoeira, no limite da Vila de Almada.

Vamos agora fazer um intervalo para dar uma olhadela à sua vida familiar. Um ano após o casamento nasceu em Lisboa, no dia 26 de Junho de 1775, o seu primeiro filho, o Gabriel, que foi baptizado em 6 de Julho na freguesia de Santa Cruz do Castelo; o facto do baptismo se ter realizado no Castelo, parece indiciar que terá sido nessa freguesia que ficaram a morar a seguir ao casamento. O Gabriel viria a ser uma figura algo controversa e creio mesmo, eminência parda de sua mãe, como veremos.  

                              
                                                 Burguesia. Vestuário quotidiano em 1800-1810

Gabriel foi o primeiro dos nove filhos do casal. Os que depois dele nasceram foram baptizados na freguesia de São Julião, o que nos permite deduzir que em 1782 já a família se tinha mudado do Castelo, para a Praça do Pelourinho. Assim, aí nasceram o Vitorino em 19 de Janeiro de 1782, que foi baptizado no dia 31, mas faleceu com 8 meses de idade, o António José que veio a ser o nosso antepassado directo, em 1783, o Simão em 28 de Outubro de 1786, baptizado em 14 de Novembro, o Firmino José em 11 de Outubro de 1789, baptizado em 23, o Joaquim baptizado em 26 de Janeiro de 1791 (o assento não refere o dia do nascimento), o Clemente em 22 de Novembro de 1794, baptizado em 16 de Dezembro, o Inocêncio em 29 de Dezembro de 1796, baptizado em 14 de Janeiro do ano seguinte, e finalmente uma menina, a Ana Ceríaca, que foi baptizada em 16 de Março de 1799 (o assento também não refere o dia do nascimento).

E os anos foram passando. Os últimos anos muito difíceis. Portugal tentava recuperar das devastações provocadas pelas invasões francesas, e do exílio da Corte no Brasil. A família tinha visto três dos seus filhos partirem para a guerra, mas felizmente todos regressaram. Os negócios, esses, certamente sofreram, e muito. E a saúde…já não era a mesma. 

É assim que em 29 de Novembro de 1816, na sua casa de morada no sítio do Caramujo, António Pereira Rangel decidiu mandar redigir o seu testamento; o tabelião Bernardo José d’Andrade Perdigão, nele deixou expresso que o testador estava “…em seu perfeito juízo e claro entendimento segundo o meu parecer posto que com a sua moléstia crónica de gota de que há anos padece…”. 

A propósito, num processo corrido no ano de 1813 no Juízo da Conservatória da Moeda, encontra-se um atestado médico que confirma a sua moléstia: 

“Atestado médico = João de Almeida, cirurgião aprovado neste Reino e seus domínios, residente nesta Villa de Almada = Certifico que no lugar do Caramujo limite desta villa he morador o Sr. António Pereira Rangel, cavalleiro profeço na Ordem de Cristo o qual padece a muitos annos molestia de gota e presentemente se acha com dores excessivas nos ortos inferiores e para poder dar alguns paços lhe he preciso andar emcostado a hum pao, assim o considero incapaz de poder sahir da estremidade da sua casa e por ser verdade todo o referido e esta me ser pedida o passei que juro aos Santos Evangelhos. Caramujo, 26 de Agosto de 1813”.

Nesse testamento, que mandou redigir aos 67 anos de idade, o António reconheceu como herdeiros os seus filhos Gabriel, António, Simão, Firmino e Anna, depreendendo-se assim que todos os outros já tinham falecido.

À semelhança do que fiz relativamente aos testamentos de seus pais, vou apenas salientar o que de mais relevante consta do seu ; a sua primeira disposição foi legar o seu prazo do Caramujo, em segunda vida, a sua filha Anna “…deixando-a por emancipada…” para que o pudesse assumir sem interferências quer do poder judicial (o que aconteceria por força da lei caso ainda fosse menor) quer do familiar; nomeou os seus testamenteiros em número de três, sendo que apenas um era seu filho, e curiosamente o terceiro deles, o Simão, com a indicação expressa “…para que pela minha morte venha ajudar sua Mãe, Cabeça de Casal, no Inventário e na boa administração dos bens para que não se destruam…”; rogou que “…a minha amada mulher e dita minha filha vivam em boa união e com a sujeição que sempre teve a filha a sua Mãe. Mas no caso que esta admita outra Companhia, além da filha…o meu primeiro testamenteiro levará a dita minha filha para a companhia de suas irmãs  ou para um Recolhimento que ela escolher…”; enumerou as quantias que cada um dos seus filhos já vinham recebendo da sua mão e se encontravam assentes nos seus livros, determinando que elas fossem consideradas no acto das partilhas, acrescentando uma preocupação assaz interessante, que “…nenhum dos ditos meus filhos possa exigir do outro meu filho Gabriel, o que tenho gasto na sua subsistência e de seus filhos…” (então não fazia o mesmo com todos?); determinou que “…o meu funeral quero que se faça sem pompa e só com a decência e piedade que correspondem às minhas circunstâncias, quero somente uma Missa de Corpo presente a qual será dita no Oratório pelo Padre Frei Paulino, se estiver em minha Casa…”; finalmente legou às suas quatro sobrinhas, filhas de sua irmã D. Maria Rangel de Macedo, os bens de raiz que na província do Minho que lhe tinham pertencido por óbito de seus pais.

Quando leio este testamento, conhecedor do que se lhe seguiu, ocorre-me sempre ao pensamento que algo de sui generis se passava na família, e que o António Pereira Rangel sabia muito bem o que era, antecipando o que se iria passar após o seu falecimento.

Feito o testamento a vida seguiu em frente. As próximas notícias que dele temos datam já de 16 de Setembro de 1819, altura em que vendeu pela quantia de 6.300$000 réis, uma pequena fortuna, uma Quinta que então possuía no lugar do Arneiro, na freguesia de São Domingos de Rana, termo da Vila de Oeiras. Porque é que a vendeu? Não o vamos conseguir saber. Do que não há dúvida é que em 5 de Maio de 1818, ou seja mais de um ano antes, mandara anunciar na Gazeta de Lisboa: 

“Vende-se a quinta denominada de Nossa Senhora da Conceição e S. João sita no lugar do Arneiro, Freguezia de S. Domingos de Rana, Termo da Villa de Oeiras, que consta de casas nobres com Capella e porta para a rua, grandes vinhas, com arvores de fruta de todas as qualidades, adega, lagares, jardim e mais pertenças, livre de foro e a Siza he singela; quem quizer comprar a dita quinta, falle com a loja da Gazeta”. Pareceu-me interessante deixar aqui a descrição dessa quinta,

“…que se compõe de Casas Nobres  e térreas, com sua ermida da invocação de Nossa Senhora da Conceição e São João, com três Lagares, Adega e várias acomodações por baixo, com seu Poço, dois tanques de pedra de cantaria, um repuxo de água, casa com Cascata, com suas árvores de fruta e silo e três com suas parreiras em roda e de uma vinha mística , tudo murado em roda; uma vinha grande defronte das casas, que consta de vinhataria e árvores de fruta, toda fechada e de uma casa que serve de Cocheira e Cavalariça; uma vinha chamada o Redondo toda tapada sobre si doutra vinha chamada o Bacelo Grande, também tapada sobre si com algumas oliveiras; de outra vinha chamada do Moínho de vento com sua casa térrea…e assim mais de outra vinha chamada dos Recibos com suas casas, sitas estas no lugar do Arneiro e a vinha nos Recibos…e finalmente uma grande fazenda chamada o Tojal que consta de vinhataria e árvores de fruta, com sua casa térrea no meio da mesma fazenda…”. 

Tenho tentado saber onde realmente se localizava a dita quinta mas sem sucesso até agora. 


Assinatura de António Pereira Rangel na escritura de venda da Quinta no Arneiro


O António pouco gozou deste rendimento. Cinco meses mais tarde, aos 22 dias do mês de Fevereiro de 1820 faleceu na sua casa no Caramujo, vitimado por uma apoplexia, razão pela qual apenas lhe foi administrado o Sacramento da Extrema-Unção; foi sepultado no dia seguinte, em caixão , na igreja de Nossa Senhora da Piedade, na Cova da Piedade.

Talvez fragilizada pelo falecimento do marido, no dia 9 de Maio desse mesmo ano, D. Luiza do Nascimento mandou redigir o seu próprio testamento; nele nada há de especial, e em nada foge ao que já sabemos ser a forma usual, talvez apenas de realçar esta sua disposição: “…Deixo por meus herdeiros nas duas partes dos meus bens a meus cinco filhos, Gabriel Pereira Rangel, António Pereira Rangel, Simão Pereira Rangel, Firmino José Pereira Rangel, D. Anna Ceríaca Rangel e lhes recomendo principalmente a paz, amizade e união entre si, e a terça dos meus bens tomada na que com mais igualdade for possível, a deixo ao primeiro dito dos meus filhos Gabriel em prova de amizade e do afecto que lhe devo … a quem também nomeio meu testamenteiro…”. Lembram-se do que atrás escrevi sobre o Gabriel?!

A partilha dos bens deixados por António Pereira Rangel foi tudo menos amigável, originando uma guerra legal que se arrastou por dezassete anos, de 1820 a 1837. A documentação relativa a essa disputa conservou-se até hoje, guardada na Torre do Tombo, constituindo um processo com 1125 folhas manuscritas frente e verso; durante semanas dediquei dias inteiros à transcrição das partes que considerei mais pertinentes, por permitirem a reconstituição dos grupos familiares desavindos, as suas motivações, os bens em disputa, e respectiva valoração. 

Não vou desenvolver exaustivamente tudo quanto então se passou, mas sómente aflorar a forma como se passou; de um dos lados encontramos a viúva, D. Luisa do Nascimento Rangel e seu filho mais velho Gabriel, do outro os seus restantes filhos, a Anna Ceríaca e seus irmãos António José, Simão e Firmino José.

O fulcro de toda a disputa foi a elaboração do inventário dos bens móveis, imóveis, dívidas, e importâncias a receber de terceiros; parece que D. Luiza não estava muito interessada em conclui-lo, pois enquanto este decorresse podia continuar a usufruir do património deixado pelo marido, sem fazer partilha, sendo nesse intento secundada pelo seu filho Gabriel.

Decorrentes dessa demora encontram-se no processo inúmeros requerimentos apresentados pelos outros filhos, com o intuito de se apressar o encerramento do dito inventário, e assim se poder efectuar a partilha dos bens. Neles foram esgrimidos, entre outros, os seguintes argumentos: 

“…é voz corrente que a Autora (D. Luiza) depois da morte de seu marido tratou sempre muito mal a ré sua filha, tanto assim que não consentia que esta comesse à sua mesa e por isso a mesma ré se resolveu a tirar-se de sua companhia com fatos bens insignificantes e se acha suprida na companhia de um seu irmão (Simão), sendo público que até ao presente a autora não tem partilhado nos bens do casal…”;

“…como porém a inventariante (D. Luiza) não tem outras vistas mais do que demorar-se na fruição dos bens do casal, o que bem se conhece de todo este processo…”; 

“...que sendo que sua mãe D. Luiza do Nascimento Rangel, que ficara de posse e cabeça de casal dos bens que faziam o objecto da herança, de comum acordo com o irmão mais velho dos suplicantes, que já nada tem no casal, desfrutaram e deterioraram os mesmos bens, sem que os suplicantes lhe pudessem obstar, tomaram a resolução de obrigar a dita sua mãe a fazer o inventário pelos meios que a lei lhes facultava…”; 

“…deu início a vergonhosa e escandalosa chicana que os Autos apresentam, esgotando todos os meios de prolongar o instrumento, que há perto de quatro anos começou, sem que os suplicantes pudessem obter a partilha feita e também posse de suas legítimas…”; 

 “…pelo estado de ruína a que a inventariante, sua mãe (se é que esse nome merece), tem reduzido os mesmos bens, não fazendo mais que desfrutá-los…”; 

 “…pois são as leis da humanidade, o desamparo de uma filha donzela que sua mãe abandonou e o direito da propriedade respeitado pelas leis da sociedade, quem demandam a V.S. toda a protecção a favor dos suplicantes, contra os vexames que a sua mãe, desapiedadamente, lhes tem causado…este procedimento, Meritíssimo Senhor, é falta de uma religiosa moral e até brada ao Céu e clama justiça, por ser praticada por uma Mãe contra os próprios filhos…”; 

“…Notável é sem dúvida este processo de inventário em que a par da trapaça empregada por aquela mesma cabeça de casal, de mãos dadas com um co-herdeiro, aos quais incumbia a boa fé e a brevidade de dar partilha a seus filhos e irmãos, em desempenho da última vontade de seu marido e pai, aparece de mistura a refinado dolo com que não só se tem pretendido lançar a confusão neste processo sumaríssimo…”.  

Já por parte de D. Luísa, a justificação para o atraso na conclusão do inventário sempre se baseou na falta de uns livros, certamente de contas, que se encontrariam na posse de terceiros; chegou ao ponto de alegar in extremis, que o testamenteiro que os teria em seu poder “…se acha em estado de demência…”, e que por isso não conseguia que ele lhos entregasse.   

E assim os anos se foram passando, e o caso arrastando-se sem solução à vista. Tudo ainda mais se complicou com o casamento da Ana Ceríaca em 1826, e o falecimento de três dos co-herdeiros, o do António José em data próxima ao ano de 1834, o da própria viúva em 1834, e o do Gabriel em 1836, aparecendo então novos herdeiros, alguns deles de menor idade. 

Não vale a pena trazer à colação mais documentos, tenho o processo comigo e posso emprestá-lo a quem estiver interessado em o ler; adianto apenas que se trata (até parece hoje…) de uma sucessão de requerimentos, despachos e recursos, apresentados alternadamente pelas partes envolvidas, e que acabaram (como hoje…) por entupir o que deveria ser o normal andamento do processo, e atrasar por anos a decisão final da entidade judicial competente.     

Finalmente, em 8 de Maio de 1837, passados dezassete anos sobre o falecimento de António Pereira Rangel (e curiosamente, após o falecimento de D. Luísa e do seu filho Gabriel), depois de deduzidos os montantes destinados à liquidação de dívidas a terceiros, procedeu-se às partilhas da seguinte forma: 

Simão Pereira Rangel, 2.423$446 réis; Firmino José Pereira Rangel, 5.939$383 réis; Anna Ceríaca Rangel, 8.482$046 réis; Gertrudes Maria da Encarnação Rangel (viúva do Gabriel), 5.606$624 réis, e a cada um dos seus filhos 1.401$656 réis; Bonifácia do Vale Rangel (viúva do António José), 2.969$681 réis, e a cada uma das suas filhas, Carolina Eusébia Rangel e Anna Carolina Rangel, 1.484$441 réis. 

O inventário dos bens  deixados por António Pereira Rangel é extremamente interessante pela visão que nos permite ter sobre o que era a sua riqueza em vestuário, artigos pessoais, mobiliário, roupas de casa e bens de raiz.     

Passemos agora ao que foi a vida dos seus filhos, começando pelo primogénito Gabriel, que já sabemos nasceu em 26 de Junho de 1775 e foi baptizado no dia 6 do mês seguinte na freguesia de Santa Cruz do Castelo. A primeira notícia que sobre ele nos aparece é a do seu casamento com Gertrudes Maria da Encarnação, celebrado no Oratório de casa da família Pereira Rangel, no largo do Pelourinho, no dia 29 de Dezembro de 1793; deste casamento vieram a nascer cinco filhos, António, Adelaide, Augusto, Domicilia e Gabriel. 

Há indícios de que o Gabriel não terá sido realmente um bom rapaz, pois para além do que já ficou dito sobre o que foi o seu papel no inventário dos bens deixados por seu pai, outros factos apontam nesse sentido, veremos alguns, para já este: 

Em 1798 o próprio pai moveu-lhe uma acção judicial, “…Diz António Pereira Rangel, Moedeiro da Casa da Moeda…que por saldo de todas as contas que tem tido com Gabriel Pereira Rangel…é credor ao suplicado de 2.553$423 réis, cuja dívida procede de várias somas que por ele pagou a diversos lavradores de vinhos…e despesas miúdas que com ele fez…”; o Gabriel fez confissão desta dívida quando se encontrava preso na Cadeia da Corte, e logo se coloca a questão, estava preso por causa dela ou por outro qualquer motivo? 

Do que não há dúvida é que o Gabriel foi condenado, e para poder pagar a dívida a seu pai nomeou todos os bens que possuía na cidade de Lisboa, e no lugar do Caramujo, declarando que “…não tinha dúvida que neles se faça penhora, para pagamento da mesma…”; pelos autos de penhora então efectuados, ficamos a saber que morava no Largo do Pelourinho , defronte da igreja nova de São Julião, e que tinha armazéns de vinhos quer no lugar do Caramujo, quer em Lisboa na rua Direita de São Roque (rua que ao longo dos anos foi sendo sucessivamente denominada de rua Direita do Mosteiro de São Roque, rua de São Roque, rua Larga de São Roque, rua do Mundo e actualmente rua da Misericórdia).  

1808. Vivia-se a ameaça de invasão por parte dos exércitos napoleónicos. Em 28 de Dezembro desse ano, o Príncipe Regente, futuro Rei D. João VI, face a uma pretensão da Corporação dos Negociantes da cidade de Lisboa, autorizou que fossem criados dois Regimentos, um de cavalaria e outro de infantaria, constituído pelos negociantes e mercadores das cinco classes, para servir a guarnição, polícia e defesa da cidade de Lisboa, sempre que as circunstâncias o exigissem. 

A estes regimentos, chamados de Voluntários Reais do Comércio, apenas podiam aceder os negociantes e mercadores da cidade, e um único filho ou caixeiro dos mesmos; com esta limitação procurava-se evitar a fuga ao recrutamento para a tropa de linha, aquela que realmente dava o corpo ao manifesto, já que quem conseguisse entrar para os Voluntários Reais ficava isento do recrutamento nacional, acrescendo que este Corpo não podia ser militarmente utilizado fora da cidade de Lisboa e seu termo, como forma dos seus elementos não se afastarem muito de seus negócios…

Mas havia um senão, estes senhores voluntários tinham que se fardar, armar, equipar e sustentar por sua conta (os do regimento de cavalaria tinham mesmo que comprar os seus cavalos), mas como o dinheiro não devia ser problema para tal classe, se calhar até lhes não custava muito, e assim se pavoneavam por Lisboa, nos seus belos uniformes à época. 

Ora o Gabriel Pereira Rangel não perdeu tempo, pois logo após a criação deste Corpo a ele se juntou com o posto de cabo; pela leitura da Gazeta de Lisboa ficamos a saber que em vésperas da 3ª invasão francesa já era furriel, numa das oito companhias do Regimento de cavalaria.

Para terminar só quero referir que em 1810 os voluntários do Regimento de cavalaria, doaram os seus cavalos para a remonta do exército; é certo que por determinação das instâncias superiores do Exército, que deles necessitava para a remonta dos regimentos de cavalaria de linha. Um ofício remetido a D. Miguel Pereira Forjaz, pelo comandante do Regimento de Cavalaria dos Voluntários Reais do Comércio, reza assim: “…podendo gostosamente (ai não…) acrescentar a Vossa Excelência que todos quantos ali (Depósito de Alcântara) os entregaram (cavalos), os ofereceram gratuitamente, restando-lhes unicamente o sentimento de ficarem inhabilitados de poderem continuar no serviço a que se comprometeram…”. 

Bom. As invasões ficaram para trás, e as coisas foram mudando, só o Gabriel parece ter continuado a ser o mesmo. 

Em 1824 era arrendatário de um sobrado onde vivia, e de uma loja referida como taberna (talvez os mesmos que seu pai tivera arrendadas) no número 24 da Praça do Pelourinho, tendo nessa altura quatro criados ao seu serviço.

E de novo, em 30 de Junho de 1825, foi alvo de outro processo, desta vez por queixa contra ele apresentada junto do Desembargador Corregedor do Bairro de Belém; o motivo era o mesmo, dívidas, e o queixoso, o padre António Joaquim dos Reis, da Quinta da Boa Vista em Torres Vedras, que alegava:

“…no ano de 1823 vendeu a Gabriel pereira Rangel 32 pipas de vinho por 527$000, recebendo 296$000 comprometendo-se o comprador à solução mensal de 33$000 cláusula a que faltou sempre…a imaginação do suplicado já não tem fertilidade para novas desculpas, nega-se, foge precipitadamente na rua ou lugar em que se encontra e já se não pode duvidar da má fé…”. 

No processo relativo a esta acção encontram-se algumas notas manuscritas pelo Gabriel, com desculpas dirigidas, directa e indirectamente ao seu credor, que passo a transcrever: 

“Meu Sinh.

Qui me disserão que me them procurado a respeito do Dinhº assim eu não thenho podido satisfazer por que não thenho recebido pois avião de dar algum Dinhº e nada thenho recebido e por hisso não thenho dado algum e tanto receba de Alguma pessoa eu satisfarei também pois eu bem me custa histo”.
                                                                                               (sem assinatura)
“Romão, dirás a esse Sinhor que eu estou doente por esa razão não thenho hido q thenha paciencia q agora não lhe poço dar Dinhº q huma pessoa q me havia dar dozentos mil reis não mos trouçe assim para o fim do mês [  ] porque me mandou dizer q athe fim do mês não mo podia dar tudo isto traz dezaranjo tanto para mim como para esse Sinhor pois he huma peçoa Mtº capaz”.
                                                                                                                                      Rangel 
  “Sr. Germano

Eu não poço vir o meio dia como thinhamos tratado em razão de me ser mtº percizo hir a outra Banda ja a emqtº o q [  ] me diçe omtem hinda q agora quizesse arranjar alguma coisa er empocivel sem paçar este mês pois so para o mês que vem poderemos arranjar alguma coisa e ver milhor modo pocivel pois não he perciso andarmos com justiça pois se eu podeçe já se thinha arranjado tudo e a ser quando o sr. Vier de Torres falaremos pois isto me custa mtº”.
                                                                                                                                          R 

O Gabriel Pereira Rangel faleceu no dia 15 de Junho de 1835, no lugar do Pragal “…em uma quinta onde efectivamente estava...", conforme consta do processo de inventário dos bens deixados por seu pai; pela habilitação de seus herdeiros ficamos a saber que à data do seu falecimento já não residiam no largo do Pelourinho, mas sim na rua da Padaria, que hoje é um arruamento localizado nas freguesias da Madalena e da Sé, e faz ligação entre a Rua dos Bacalhoeiros e o Largo de Santo António da Sé.

Deixemos o Gabriel e vamos ver o que há para contar sobre outro dos irmãos, o Simão, que sabemos nascido em 28 de Outubro de 1786, e baptizado na igreja paroquial de São Julião no dia 11 do mês seguinte. O tempo passou, e só em 15 de Fevereiro de 1801 voltamos a ter notícias suas, por então ser Cadete na 1ª Companhia de granadeiros do Regimento de Infantaria de Linha nº 16; optara pela vida militar, e por isso ainda existe, felizmente, alguma informação sobre ele, que nos permite saber que em 1809 estava ao serviço, pois tomou parte no combate do Grijó: 

“…Ao chegar a vanguarda da coluna principal, eram 9 horas, ao sítio de Vendas Novas, entre Souto Redondo e Grijó, encontrou-se com os postos avançados do adversário…reconheceu-se então que os franceses haviam tomado posição nas elevações do Grijó…depois de um rápido reconhecimento que lhe deu a conhecer a situação do inimigo, Wellesley encarregou a brigada Murray de lhe tornear o flanco…empenhando-se a brigada Stewart no ataque aos pinhais e aldeias do centro. Couberam as honras da peleja ao Iº batalhão de infantaria 16, que mais uma vês se cobria de glória, exalçando o valor do exército português, e honrando a Pátria…no decorrer do combate, o bravo batalhão, saindo da linha, avançou com admirável garbo e intrepidês contra o flanco direito dos franceses, operando prodígios de valor; expulsou-os prontamente do pinhal que ocupavam, decidindo da acção em favor dos aliados. Wellesley, Beresford e o próprio ministro inglês, não regatearam elogios aos bravos soldados portuguêses…”. 

Saiba-se que neste combate “…as perdas totais dos nossos foram 96 homens, entre mortos, feridos e extraviados, cabendo ao batalhão do 16, que tanto se expôs, apenas o alferes Vasconcelos e 3 soldados mortos, e o tenente Veríssimo e um soldado feridos…”. 

Entretanto desligado do Real Serviço, por razões que desconhecemos, a ele voltou em 28 de Fevereiro de 1810; vivia-se a eminência de mais uma invasão, a do Massena, pelo que voltou ao activo, tendo sido promovido ao posto de Alferes da 7ª companhia do seu velho Regimento. Tomou parte na batalha do Buçaco, e no sítio (cerco) a Cidade Rodrigo em Janeiro de 1812.

Mas no mês de Maio desse mesmo ano, encontrando-se o Regimento acantonado em Trancoso, pediu demissão do seu posto: 

“…Diz Simão Pereira Rangel Alferes da 7ª Companhia do Regimento de Infantaria Nº 16, que tendo asentado novamente, e voluntariamente praça no ditto Regimento pella feliz restauração, e como tenha athe agora acompanhado o Regimento, ás differentes Marchas que tem tido e achando-se ao prezente inteiramente impossibilitado de saúde para se poder prestar com a attividade que deseja e necessita huma Campanha como a actual, por isso Roga a V.Exª o haja de demitir do Real Serviço, para o fim de poder hir tratar da sua saúde…”.

Foi deferido. Por ter participado nas campanhas contra os franceses, nomeadamente no combate de Grijó, na batalha do Buçaco e no sítio a Cidade Rodrigo, recebeu a Cruz da Condecoração para Oficiais da Guerra Peninsular 3/2 (3=3 anos de campanha / 2=prata) .

Casou em 29 de Setembro de 1813 na igreja da Lapa com Mariana Rosa, e deste casamento houve pelo menos um filho a quem deram o nome de Guilherme. 

Outro dos irmãos. O Firmino José que também sabemos ter nascido em Lisboa no dia 11 de Outubro de 1879, e que foi baptizado na igreja de São Julião no dia 23; sobre ele existe vasta informação pois serviu a Pátria, servindo no Exército até ao fim da sua vida. 

No dia 18 de Dezembro de 1808 assentou primeira praça no Regimento de Infantaria 16, e logo no ano seguinte tomou parte na restauração do Porto; em 1810, já com a patente de Alferes, passou ao Regimento de Caçadores nº 7.


Nos anos que se seguiram participou, em território nacional, na batalha do Buçaco, e já no território do reino vizinho, no cerco de Badajoz e nas batalhas de Albuera e Vitória, recebendo da Monarquia Espanhola as Cruzes de Distinção por nelas ter participado ; na perseguição movida aos exércitos franceses em retirada, entrou no combate de Roncesvalles, onde foi gravemente ferido por bala no dia 25 de Julho de 1813, e na batalha de Toulouse, onde em 10 de Abril de 1814 foi promovido por distinção ao posto de Tenente. Findas as campanhas recebeu a Cruz da Condecoração para Oficiais da Guerra Peninsular 3/2. 

Em 1820 foi promovido ao posto de Capitão, tendo sido colocado no Regimento de Caçadores nº 10. Três anos mais tarde deu-se a “Vila-Francada”, e conforme consta na sua folha de Matrícula conservada no Arquivo Histórico Militar, “…por não ser affecto ao Governo Absoluto e não ter tomado parte na Revolução no anno de 1823…” foi desligado do serviço activo.

Como sabemos, esses foram anos em que o poder se foi alternando ao sabor da correlação das forças, pelo que em Agosto de 1826, estando do lado certo, foi reintegrado com o mesmo posto, no Batalhão de Caçadores nº 6. 

Ano de 1828. Na sua caminhada para o trono D. Miguel mandou substituir todos os governadores militares de tendência liberal, dissolver as Câmaras, proibir o hino da Carta, e declarou-se Rei Absoluto; estes acontecimentos levaram a que em Maio desse ano, o Batalhão de Caçadores nº 10 que se encontrava aquartelado em Aveiro, se revoltasse, e que no Porto eclodisse um movimento militar de carácter liberal, na sequência do qual foi criada uma Junta Governativa. E a repressão não se fez esperar; em Junho, face à manifesta superioridade das forças miguelistas, a Junta reconheceu a derrota, e os principais chefes liberais exilaram-se em Inglaterra, ao mesmo tempo que grande parte das tropas sublevadas atravessavam a fronteira para a Galiza. 

O Capitão Firmino José Pereira Rangel foi um dos que nessa altura passaram a fronteira, e acabaram por emigrar para Inglaterra através da Galiza; a confirmar a sua opção política existe uma informação que sobre ele foi dada em 1835 pelo Comandante do 2º Regimento de Infantaria, que refere “…foi hum dos que acompanhou este Corpo na Emigração pela Galiza, e dali para Inglaterra, nunca serviu o uzurpador e os seus sentimentos forão sempre affectos á legitimidade de Sua magestade Fidelíssima a Rainha…”. 

Regressou a Portugal incorporado no Exército Liberal que desembarcou no Mindelo, integrado no Batalhão de Oficiais, com o posto de 2º sargento da Companhia de Caçadores; durante o cerco do Porto serviu como capitão na 6ª Companhia do 1º Batalhão Móvel, e foi nessa Unidade que em 1833 foi promovido por distinção ao posto de Major pela “...bôa direcção e ordem com que conduziu as duas Companhias daquelle Batalhão, que Commandou no reconhecimento feito ao Castello do Queijo, soffrendo para isso hum vivíssimo fogo do inimigo, e sustentando-se na posição que havia occupado até que recebêo Ordem de se retirar…”. 

Agora, deixo-vos com uma pequena transcrição (vou beber um cafezinho…) que retirei da “Revista Historica de Portugal, desde a morte de D. João VI até o fallecimento do Imperador D. Pedro”, uma edição de 1846, que ilustra a atrás citada acção deste nosso parente:

“…o Marechal Solignac logo que concebera os promenores do exercito debaixo do seu commando, ordenou algumas alterações preparando-se para dar um golpe de mão sobre as linhas do inimigo, que cada vez mais ameaçavão o desembarque da Foz, ponto essencial e agora da maior importancia para a defeza do Porto. O Monte de Crasto, posição situada na extrema direita da circumvallação inimiga, dominava completamente todos os movimentos do desembarque; foi portanto a este Forte que se dirigirão as tenções do General. O seu plano era por ventura atacal-o de frente, emquanto uma columna devia avançar pela estrada de Lordello para tomar o inimigo pelo flanco e retaguarda. O assalto do Castello do Queijo á beira mar seguir-se-hia sob a cooperação da Esquadra de Sartorius, que deveria cruzar o fogo da sua artilharia. No dia 24 de Janeiro a tropa achando-se disposta ás horas determinadas, observou-se a Esquadra afastada muito a sul com a força do vento norte. Então o General impacientado da demora avançou com bravura, tomando logo a posição apesar da resistencia das forças inimigas; mas como principiasse a escurecer, e a columna destinada a flanquear não apparecesse, Solignac achou-se em uma situação arriscada por causa dos Batalhões Miguelistas que crescião a todo o momento. Mais tarde o Major Rangel partindo a fazer um reconhecimento sobre o castello do Queijo, que reputava talvez evacuado em razão do fogo dos navios de guerra, foi recebido com um vivissimo tiroteio, e teve de retirar com indizivel trabalho cortado pelas columnas inimigas. Pelas 8 horas da noite Solignac, de seu motu proprio ou por conselhos d'outrem, abandonou o Monte de Crasto, retirando-se com a tropa para os quarteis da Cidade. Nesta acção assaz renhida o Exercito Libertador teve a lamentar a perda de 60 mortos, 225 feridos, além de alguns prisioneiros...”.

Durante o cerco do Porto ainda desempenhou, sucessivamente, as funções de Major no 3º Distrito da Linha de Defesa, de comandante do Batalhão Provisório do Bairro de Santa Catarina, e de Comandante do 1º e 2º Distrito de Linha. Pelos serviços prestados no Cerco do Porto foi agraciado com o grau de Cavaleiro da Ordem de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa. 

Em 1837 foi promovido a Tenente-Coronel, e a Coronel graduado em 1847. Já em final de carreira desempenhou as funções de Tenente-Rei da Praça de Peniche, cargo existente nas praças de guerra, imediatamente inferior ao de Governador, a quem substituía nos seus impedimentos com poderes civis e militares. Foi Comendador das Ordens Militares de São Bento de Aviz, e de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa. 

Casou em data desconhecida com D. Balbina Rita Rocha, mas não deixou descendência. Pelo epitáfio gravado no seu túmulo, no Cemitério do Alto de São João (nº 768, Rua 3), ficamos a saber que quando faleceu em 13 de Fevereiro de 1859 tinha o posto de Marechal-de-Campo, ou seja, o posto de General responsável pelo comando de uma Brigada.



Em 1860, na Câmara dos Deputados, durante uma discussão sobre pensões a atribuir pelo Estado, foi aprovada a atribuição à sua viúva de uma pensão vitalícia de 300$000 reis anuais por ser "...um acto de justiça incluir n'esse numero a viuva do marechal de campo Firmino José Pereira Rangel, porque foi um homem que fez toda a companha peninsular; foi ferido, emigrou esteve na ilha, veiu para o Porto, fez a guerra da restauração, morrendo no anno passado…”.

Passemos agora à Ana Ciríaca que sabemos ter sido baptizada em 16 de Março de 1799. Casou no dia 11 de Janeiro de 1826, na igreja de Nossa Senhora da Conceição (a Nova), com Paulo Gomes de Abreu que era viúvo, e Assistente deputado do Comissariado na Província do Alentejo; o casamento durou pouco tempo, pois Paulo Gomes de Abreu faleceu poucos meses passados, no dia 26 de Abril. 

No seu testamento, Paulo Gomes de Abreu nomeou sua esposa, D. Ana Ceríaca, como sua herdeira universal, dele excluindo assim as suas duas filhas legitimadas, alegando que assim o fazia por não ter trazido bens próprios para o casamento, sendo os do casal aqueles que sua mulher possuía por herança de família; não será despiciendo lembrar que pelo matrimónio o homem tornava-se legítimo dono de sua mulher, e de todos os bens que esta possuísse. Contudo procurou acautelar o futuro das filhas, solicitando a sua mulher que as protegesse após o seu falecimento.

D. Ana Ciríaca faleceu em 5 de Julho de 1848 na sua residência, na rua do Barão, número 11, freguesia da Sé; no dia 23 do mês de Junho anterior, estando já doente e acamada, mas em seu perfeito juízo, mandara redigir o seu testamento em que respeitando o pedido do seu defunto marido, e talvez como forma de agradecer o facto de as enteadas terem sido o seu arrimo, as nomeou suas herdeiras universais, deixando-lhes entre outros bens, uma propriedade de casas, e um armazém sitos no lugar do Caramujo, que muito presumivelmente seriam os mesmos que lhe terão cabido por herança paterna. 

E eis-nos finalmente chegados ao irmão que nos interessa sobremaneira por ter sido o nosso antepassado directo, o António José, meu 6º avô. Nasceu Lisboa no dia 23 de Junho de 1783, e foi baptizado na igreja de São Julião no dia 7 do mês seguinte, tendo sido celebrante o seu tio paterno, o padre Joaquim José Pereira Rangel de Macedo (recordam-se dele? O filho padre do António Fernandes de Barros e de D. Ana Rangel de Macedo…); as ligações familiares não se tinham perdido. Foram padrinhos do seu baptismo, José da Silva Ribeiro e Nossa Senhora do Bom Sucesso (teria sido um parto difícil?).

Sobre o que foi a sua meninice e juventude não há registos, mas vou ensinar-vos uma maneira de entrar na intimidade da família, leiam (se é que ainda o não fizeram) o inventário dos bens deixados por António Pereira Rangel, toda a família os viu e usou, coloquem-nos no seu contexto, fechem os olhos, e tentem imaginar qualquer coisa, talvez consigam… 

Quando nos aparece a primeira notícia sobre ele, conta já vinte e um anos de idade, estamos portanto no ano de 1804; nesse ano, sendo Cadete no Regimento de Lippe (mais tarde denominado Regimento de Infantaria nº 1) requereu ao Príncipe Regente D. João, que lhe fizesse a mercê de uma licença para se casar. Porquê? Porque era filho-famílias, ou seja, vivia em casa e por conta do pai, e este não lha concedia. 

Pode parecer estranho aos olhos de hoje, mas então o Direito Civil determinava que “…os filhos-familias, e os menores de vinte e cinco anos não podem contractar esponsaes sem consentimento dos pais ou tutores…”, sendo que em o fazendo “…o filho-famílias varão, que casa sem o dito consentimento, incorre em desherdação e privação de alimentos a arbítrio do pai…”.

Ora, por razões que desconhecemos, mas que poderão estar relacionadas com a idade da pretendida, sete anos mais velha que o António José, e circunstâncias que aparecem menos claras, o seu pai não lhe quis conceder a necessária bênção; contudo a lei previa, quando tal se justificasse, o recurso à autoridade do Rei que como pai dos seus vassalos se substituía ao pai genético. Foi assim que o requerimento apresentado pelo Cadete António José Pereira Rangel foi enviado, a Mando do Príncipe Nosso Senhor, ao Desembargo do Cível da Corte a fim de ser devidamente informado, após prévia audição do pai do requerente.  

Será interessante referir que ele era suposto residir com a família no Largo do Pelourinho, e ela na rua dos Calafates, freguesia de Nossa Senhora da Encarnação.

E quais as razões aduzidas pelo nosso Cadete no seu requerimento? Bom, interessantes no mínimo; começou por alegar que ele e a pretendida eram “…pessoas iguais em qualidade…”, que “…o casamento até pelos princípios da Religião necessariamente se deve efectuar…”, que recorria à Real Pessoa porque “…disputas judiciais e forenses, sempre eram odiosas aos Pais e muitas vezes menos decentes para as famílias…”, terminando “…concorre com esta Mercê para se verificar o que todos os direitos exigem do suplicante em sossego da sua consciência e sanação do dano, que aliás sofrerá o crédito melindroso duma Donzela, e de honrada família…”. Sem comentários.  

O tabelião encarregue de ouvir António Pereira Rangel (pai) sobre a matéria constante no requerimento apresentado por seu filho, escreveu no processo “…Certifico finalmente que no dia de hoje procurei ao supplicado, e fallando lhe para saber d’elle se tinha a resposta feita, me respondeo; que não tinha feito resposta alguma…” (curto e grosso). 

Em seguida procedeu-se à inquirição de testemunhas, que invariavelmente disseram conhecer os pretendentes, e que estes eram “…iguais em fortuna sendo ambos filhos famílias…”, que os pais da pretendida eram “…pessoas muito honestas e do melhor comportamento…”, sendo uma “…famillia muito honesta e recolhida…” e que “…não há a mínima desigualdade de famillia em qualidades, nem em cabedaes…”. 

Perante tais testemunhos, e falta de impugnação por parte do pai, em 9 de Agosto de 1805 o António José recebeu a tão desejada autorização Real para se poder casar, e logo no dia vinte e dois, pelas sete horas e meia da manhã, na igreja de Nossa Senhora da Encarnação casou com Ana Bonifácia do Vale, sendo do acto testemunhas os irmãos da noiva, Paulo José do Vale e Nuno Pereira do Vale, bem como “…outras que prezentes estavão…”. 

Não sei se os pais do António José, face às circunstâncias que precederam o casamento, nele estiveram presentes, mas passados nove meses seu pai aceitou ser padrinho de baptismo da primeira filha do casal. Foi assim que no dia 4 de Junho de 1806, o velho António Pereira Rangel, e sua filha Ana Ceríaca apadrinharam o baptismo da Ana Carolina que tinha nascido em 21 de Maio, na rua dos Calafates; o baptismo celebrou-se na igreja da Encarnação, mas os padrinhos não estiveram presentes sendo representados, respectivamente pelo padre António Rodrigues da Costa, e por Gabriel Pereira Rangel. 

António José e D. Ana Bonifácia viriam a ter mais duas filhas, a Carolina Eusébia que nasceu no dia 14 de Agosto de 1808, na rua do Almada, freguesia de São Paulo, e foi baptizada em 30 do mesmo mês na igreja da Conceição Nova , e a Gertrudes que nasceu em 15 de Novembro de 1811, e foi baptizada no dia 26 desse mês na igreja de São Julião (faleceu em data indeterminada anterior a 1825); nestes baptismos o padrinho voltou a ser o avô paterno das baptizadas, que manteve a sua e continuou a não estar presente no acto, fazendo representar no primeiro pelo cura da igreja de São Julião, e no segundo por seu filho Firmino José.

À semelhança dos seus irmãos, Simão e Firmino José, e como já aflorei ao mencionar a sua qualidade de Cadete no Regimento de Lippe, o António José também tinha optado pela carreira das Armas, tendo a sua primeira praça ocorrido em 27 de Junho de 1801; mas em 29 de Outubro de 1805 deu Baixa do Real Serviço, ou seja tornou-se civil, decisão que poderá ter tido algo a ver com seu casamento celebrado dois meses antes. 

Em 28 de Fevereiro de 1810, anunciada que estava a terceira invasão francesa, por vontade própria, ou em consequência da reorganização do Exército português iniciada no ano anterior pelo Marechal Beresford, o António José foi reintegrado no Regimento de Infantaria 16 , com o posto de Alferes. Na foto, tenente do RI 16 (1806-1815).

O Alferes António José Pereira Rangel, entre outras acções menores, participou na batalha do Buçaco, em 1810, na batalha de Salamanca onde foi ferido, em 1812, no assalto à fortaleza de São Sebastião de Biscaia, e nas batalhas de Victória, Nive e Nivelle, todas estas acções já no ano de 1813, e com o posto de Tenente a que entretanto tinha sido promovido. 

Apesar de toda a carga subjectiva associada, nada me parece melhor para tentar recriar a sua personalidade, que recorrer ao que sobre ele ficou escrito; assim vou transcrever algumas das informações que lhe foram dadas pelos seus Comandantes, no período que entre 1810 e 1814:

“…o Senhor Cadete Antonio Pereira Rangel tem sempre servido no dito Regimento do meu Commando com a maior honra actividade e zello do Real serviço na prezente Campanha com muito boa conducta civil e Militar executando as minhas ordens com grande actividade e a bem do serviço de Sua Alteza Real…”. 

 Coronel Luiz Machado de Mendonça Comandante do Regimento de Infantaria 16 

“…tenho observado que o Alferes da quarta Companhia Antonio Pereira Rangel tem toda a actividade e zello em cumprir com as suas obrigaçoens e pellas informaçoens que delle tenho he muito digno de toda a contemplação, tanto pela sua conducta Militar, como Civil…”.

Major Ricardo Armstrong Comandante do Regimento de Infantaria 16, (comandou o Regimento na batalha do Buçaco) 

 “…passando no dia vinte e três de Janeiro a commandar o Posto avançado da Azambugeira com hum Destacamento do Regimento de Infantaria de Linha Numero dezeseis, composto de cento e sincoenta soldados, dezeseis officiais inferiores, hum Capitão e seis Subalternos, em cujo numero entrava o Alferes da quarta companhia Antonio Pereira Rangel; este official se portou com todo o valor e honra comprindo tudo de que o encarreguei com o maior zelo e actividade e boa inteligência, hindo ao terreno inimigo fazer todas as descobertas e forragens (reconhecimentos e obtenção de víveres) para o Destacamento…”. 

Major Rodrigo Xavier de Campos e Abreu, do Regimento de Infantaria de Linha nº 1 

 “…nelle tenho visto servir constantemente e com muita satisfação o Tenente da sexta companhia Antonio Pereira Rangel dando-me sempre exoberantes provas de muito interesse pelo serviço de Sua Alteza Real tanto no commando económico daquella companhia, que commandou sempre, como nas mais árduas fadigas da aturadoura pretérita companhia assistindo a todas as Batalhas emque o Regimento se ingajou, tendo sido ferido gravemente n’aquella de Salamanca, portando-se sempre como hum verdadeiro e honrado Portuguez…”.  

Coronel Francisco Homem de Magalhães Quevedo Pizarro, Comandante do Regimento de Infantaria 16 

Pela sua participação nas campanhas recebeu a Cruz da Condecoração para Oficiais da Guerra Peninsular 4/1 (4 anos de campanha / Ouro). 




Nos anos seguintes as suas informações semestrais mantiveram a tónica das que acabámos de ver, mas começaram também a aparecer indícios de qualquer coisa, pois a par de pareceres que o elogiam, surgem outros, poucos, menos abonatórios:

Regimento de Infantaria nº 16

Ano de 1813, “…Este Oficial tem propensão para todo o serviço, se se empregar seriamente no desenvolvimento do seu natural talento…”.

Coronel Francisco Homem de Magalhães Quevedo Pizarro, Comandante do Regimento

Ano de 1814, “…É bom oficial e dá esperanças de o continuar a ser em todos os postos que ocupar, porque é interessado, caprichoso e honrado…”. 

Coronel Francisco Homem de Magalhães Quevedo Pizarro, Comandante do Regimento


Ano de 1814, “…Este Oficial tem propensão para se esperar dele muitos bons serviços, se se aplicar seriamente no desenvolvimento dos seus talentos…”. 

Coronel José António Vidigal, Comandante do Regimento

Ano de 1815, “…Este Oficial tem bastante viveza e se o tempo conseguir dele moderação nos seus excessos, virá a ser um bom Oficial…“. 

Tenente Coronel Joaquim de Brito Coutinho Araújo Cunha de Porto Carrero, Comandante do Regimento

Ano de 1816, “…Este Oficial Comandante da Companhia nº 4, não tem as suas contas exactas e tem muitas faltas quando comandou no principio de 1815…

Não se reconhece a assinatura
Ano de 1816, “…Este Oficial tem tido muitas queixas feitas contra ele pelos soldados da Companhia que comandava, relativamente a pagamentos atrasados, recebidos por ele e não pagos…”.
Major Ricardo Carrol, Comandante interino do Regimento 


Regimento de Infantaria nº 22

Ano de 1820, “…Este Oficial pela sua boa conduta tanto civil como militar, assim como pelo bem que comanda a Companhia e o pelotão em manobras do Batalhão, se faz digno de toda a contemplação…”. 

Coronel Manuel Pinto da Silveira, Comandante do Regimento

Regimento de Infantaria nº 1

Ano de 1823, “…Que é bom vivão, tem muita condescendência com os seus subordinados e por isso pouco capaz de manter a disciplina…”.

Major Joaquim Ferreira dos santos, Comandante do 1º Batalhão do Regimento 

Ano de 1824, “…É Oficial honrado, inteligente e muito educado. Tem a sua Companhia em muito bom arranjo e sabe-se fazer respeitar…”.

                                                                                                  Não se reconhece a assinatura

Continuando. Já vimos que foi Alferes, e depois Tenente no Regimento de Infantaria 16, mas que a sua promoção ao posto de Capitão em 4 de Abril de 1818, implicou a sua transferência para o Regimento de Infantaria nº 22.  

Ano de 1820. Em 15 de Setembro, na sequência da revolução liberal ocorrida no Porto no mês anterior, verificou-se em Lisboa um pronunciamento militar, ou seja, um movimento de carácter predominantemente militar, levado a cabo por Oficiais da primeira linha que mobilizaram as tropas directamente sob o seu comando, e que posteriormente contou com a adesão de civis que com ele se identificaram; o sucesso deste pronunciamento levou à deposição da Regência (Beresford), e à constituição de um governo interino em Lisboa à semelhança do que havia já sucedido no Porto. 

O detonador deste pronunciamento foi o nosso velho conhecido Regimento de Infantaria 16; a leitura de uma exposição, posterior ao movimento, subscrita pelos oficiais que nele tiveram intervenção directa, permite-nos saber o que nesse dia se passou, e porque a considero de muito interesse, coloquei-a como anexo a este capítulo, bem assim como a o impresso distribuído em Lisboa que esteve na sua génese .

Mas como aperitivo aqui fica uma pequeníssima transcrição da mesma: “…terem a gloria de tentar a empreza de libertar a sua Patria… (segue-se a relação dos oficiais envolvidos, entre eles)… o Alferes Francisco José de Faria (hoje tenente),…o Capitão António Pereira Rangel do Regimento 22 (hoje do regimento de infantaria 1),…que se achavão fazendo o serviço neste Regimento, os quaes logo que chegou a noticia do referido sucesso havião tratado a maneira prudente e segura pela qual deverião conduzir-se com o seu Regimento ao Porto, e participar da gloria dos seus camaradas…”. 

Em 24 de Novembro de 1820 o Capitão Pereira Rangel passou ao Regimento de Infantaria nº 1, o seu antigo “Regimento de Lippe” (na Ajuda, foto), onde tinha começado a carreira dezanove anos antes.

É no comando de uma força desse Regimento que o vamos encontrar no dia 24 de Junho de 1822, assegurando a Guarda de Honra a El-Rei D. João VI, ou seja, quando garantia a segurança pessoal de Sua Majestade que se encontrava residindo no Real Paço de Queluz. E passado um mês, a Gazeta de Lisboa publicava que “…Sua Magestade fez a Mercê do habito de Christo ao Capitão António Pereira Rangel, e ao Tenente Manuel Francisco Nunes da Costa, ambos do Regimento de Infantaria nº 1…”. Foi a paga.

De repente ocorreu-me isto, será que o Capitão Rangel, quando comandou a Guarda ao palácio de Queluz esteve na sala dos Embaixadores? Será que admirou as pinturas do tecto, sem saber que algumas eram obra do seu sogro? Ups, estou a adiantar-me, mas é interessante reflectir sobre os encontros e desencontros da vida… 

Dois anos passaram. Em Abril de 1824, fracassado o movimento militar liderado pelo Infante D. Miguel, que para a história ficou conhecido como a Abrilada, a Gazeta de Lisboa publicou numa quinta-feira, 13 de Maio, um manifesto de apoio a D. João VI, do qual um dos subscritores foi o Capitão António Pereira Rangel; talvez por isso se possa especular se o capitão Rangel, à semelhança de seu irmão Firmino, partilhava das ideias liberais: 

"Felicitações = Senhor. Nós abaixo assinados os Oficiais dos Corpos da Guarnição de Belém, renovamos em ocasião dos desastrosos acontecimentos ocorridos desde o dia 30 de Abril até 9 do corrente mês de Maio, os protestos de fidelidade e obediência às Ordens de V.M. transmitidas só pelas legítimas autoridades nomeadas por V. M., como fiéis Vassalos e Soldados leais = Belém, 11 de Maio de 1824." 

Vamos voltar a olhar para uma informação de serviço do capitão António José Pereira Rangel, desta vez relativa ao segundo semestre do ano de 1825, que é extremamente interessante por permitir-nos ficar a conhecer os seus dados físicos e postura pessoal; mantive os quesitos, mas adaptei-os para os dias de hoje:

Disposição Física e saúde: magro, com cinquenta e nove polegadas de altura ou seja o equivalente a 1,50 metros (mais precisamente 1,4986), saudável e robusto, muito ágil e capaz de serviço violento, muito boa aparência militar. 

Doenças: 

- em serviço nos RI 16 e 22 (1810 a 1820), 111 dias devido a ferimento (Salamanca), 617 dias por febres (em campanha), 26 dias por diarreias em marcha (campanha), 897 dias por venéreo…(em Lisboa), 10 dias por problemas nos olhos (em Lisboa), 17 dias por constipação (em Leiria);

- em serviço no RI 1 (1820 a 1826), 46 dias por constipação, 5 por problemas nos olhos, 11 dias devido a tumor, 16 dias por queimaduras (todos em Lisboa).

Conduta civil: vivia bem com os habitantes, não era caloteiro ou jogador, não devia nada ao Corpo (leia-se ao Regimento) nem a qualquer camarada, não era motivo de escândalos com mulheres ou bebidas, não rebatia soldos nem empenhava o uniforme, não frequentava casas de jogo, ou de bebidas, e eram decentes as suas companhias.

Conduta militar: vivia muito bem com os camaradas, era subordinado e fazia com que os seus subordinados o fossem também, cumpria com exactidão os seus deveres, era muito asseado, e fazia-se respeitar.

Estudos: sabia ler e escrever, estudara gramática latina, estudou e foi aprovado ao 1º ano da Aula do Comércio, não tinha conhecimentos de geografia e de desenho militar ou civil, estava suficientemente instruído nos regulamentos militares, e lia autores militares sobre Ordenança francesa.

A informação que acabámos de ver está datada de 1 de Janeiro de 1826, e termina com o seguinte juízo ampliativo do Coronel comandante “…Este Capitão he honrado e commanda bem a sua companhia pelo que o julgo útil ao serviço…”.

Nada fazia adivinhar o que estava para lhe acontecer. Foi um caso assaz estranho, não tanto pelo ocorrido, mas pelas suas circunstâncias, e célere desfecho; para que não subsistam dúvidas vou trazer à colação, cronológicamente, os documentos que o sustentam, e se encontram no seu processo individual:

27 de Julho de 1826 – Carta enviada pelo comandante do Regimento de Infantaria 1, o então coronel José Manuel Inácio da Cunha e Menezes da Gama e Vasconcelos Carneiro de Sousa Portugal e Faro, Conde de Lumiares , a seu primo Francisco Furtado de Castro do Rio de Mendonça e Faro, Conde Barbacena, que desempenhava o cargo de Ministro da Guerra: 

“O requerimento que com esta te remetto he do Capitão Rangel deste Regtº, cuja vergonhosa historia te contei e se acha divulgada por toda a Lisboa, e por isso eu assentei com elle que pedisse o ficar desligado e considerado como Capitão do Exercito, o que te peço lhe queiras fazer pª não o acabar de perder o que decerto succede se for pª outro qualquer Corpo. Não remeto o requerimento pelas vias competentes pª ver se com a maior brevidade se effectua a sua sahida pª fora do Corpo mas se quizeres o farei e te ficarei mtº obrigado se effectuares esta pertenção por ser a única de sahida airoza que este infeliz tem no meio da sua desgraça…”.

Julho, 29 - A Secretaria de Estado dos Negócios da Guerra por Decreto de 28, mandou publicar a passagem à Reforma do Capitão Pereira Rangel, com o soldo da patente pela tarifa de 1790.

Agosto, 12 - Face à sua reforma, que se pode considerar compulsiva, o Capitão António José Pereira Rangel requereu que a mesma ficasse “…de nenhum effeito porque a não pedio, e que em lugar d’ella seja mandado considerar Capitão addido ao Estado maior com o soldo de sua Patente como tinha sollicitado, ou então ser mandado continuar o serviço em qualquer Regimento, por que elle e sua família ficou com a reforma reduzida á mais infeliz sorte…” 


A sua assinatura no recurso supra

Agosto, 23 - Um ofício do Ministério da Guerra reporta que (o Capitão António Pereira Rangel) “…no dia 1 de Julho ultimo teve huma questão com o rebatedor  António Francisco já falecido, com loja no Rocio, o qual tendo medo gritou, e accudindo alli huma Patrulha de Policia, dêo a parte que o rebatedor lhe dice e o que foi seguido de alguns discursos de pessoas ignorantes do facto, que offenderão a honra do suplicante, e por isso Pede se lhe nomeie hum Conselho de Guerra para nelle provar sua conducta, e ficar illibado o seu credito, sem mancha pelo espaço de 20 annos de serviço, e com todas as campanhas da Peninsula…”; é por este documento que ficamos a saber, embora por alto, a causa aparente de toda esta questão. 

Agosto, 31 - Face ao requerido, a Infanta Isabel Maria (nomeada Regente em 1826, devido à grave doença que viria a vitimar seu pai, o Rei D. João VI) mandou que a entidade competente, neste caso o Governo das Armas da Corte e Província da Estremadura, averiguasse os acontecimentos que tinham dado lugar à saída do Capitão Pereira Rangel, do Regimento de Infantaria nº 1.

Setembro, 14 – É enviada a resposta, que não consta no processo, mas sabe-se pelo ofício que a acompanhou, que se tratava de uma informação redigida pelo comandante do RI 1.  

Outubro, 12 – O Capitão Pereira Rangel apelando ao seu passado militar ao Real Serviço, à sua isenção política, e permanente lealdade às autoridades constituídas, protestando as dificuldades que está a viver, requereu à Infanta Regente, que por “…se achar na idade de 41 anos, que empregado no Real Serviço e consomido os seus bens no Serviço efectivo d’esde aidade de 16 anos, e se acha onerado de Mulher e filhos sem que tenha outro algum rendimento de que viva alem do seo soldo, que presentemente pella sua diminuição lhe não chega para seo diário sustento…”, a Mercê de ser colocado em qualquer Regimento do Exército.

16 de Janeiro de 1827 – Requereu ao Ministro da Guerra a sua reintegração em qualquer Regimento do Exército, voltando a protestar que não pediu a reforma, deixando subentendido que ela lhe foi imposta; fez acompanhar o requerimento com várias informações de anteriores comandantes (todas em seu abono).    

Janeiro, 25 – Um documento assaz interessante, por levantar na minha opinião uma suspeição sobre a forma como este caso foi conduzido, pois nele consta que “…Não havendo documento legal do motivo que produzio a reforma do supplicante mandou-se ao Coronel do Regimento nº 1 de Infanteria onde o supplicante servia, que informasse sobre os motivos que fizerão representar o mesmo Coronel, verbalmente a S. Exª o Ministro da Guerra, a necessidade de tirar o supplicante daquelle Regimento, por não quererem os Officiaes admitilo na sua roda; o dito Coronel satisfaz informando circunstanciadamente o vergonhoso caso, bem sabido, acontecido com hum rebatedor; e como supplicante allegava a injustiça que se lhe tinha feito em o reformarem; e que queria justificar-se em Conselho de Guerra se fosse assim preciso; encarregou-me Sua Exª o Senhor João Carlos Saldanha de chamar o supplicante para lhe mostrar a referida informação daquelle Coronel, para que á vista della dicesse o supplicante se queria responder em Conselho de Guerra, cuja base seria a dita informação, dice então que falaria a este respeito com Sua Exª, e depois se apresentou nesta Direcção participando da parte de Sua Exª que não desse seguimento aquelle negocio do Conselho, e assim ficou parado ate agora”.   

Qual terá sido realmente o teor da informação dada pelo Comandante do Regimento de Infantaria 1? O que terá dito Sua Excelência, o Ministro da Guerra  ao capitão Rangel, no segredo do seu gabinete?

O que quer que tenha acontecido entre as quatro paredes foi com toda a certeza determinante, pois ou a razão não estava do lado do Capitão Rangel, ou então foi fortemente pressionado para desistir dos intentos de se expor, e talvez a outros, perante a opinião pública, ao justificar-se em Conselho de Guerra. 

Creio que é nesta última hipótese que estará a chave; nas actas da Câmara dos Deputados do ano de 1839 (doze anos passados) encontrei o registo de uma acalorada discussão sobre o Orçamento, na qual foi dito “…nos quartéis dos nossos soldados veteranos, que as feridas gloriosas de cem batalhas não puderam salvar dos horrores da fome; esta voz não poderá ser acreditada nos corredores do tesouro, aonde as viúvas e filhas dos nossos beneméritos oficiais esperam para ir meter na voragem da usura o preço do sangue e da honra de seus chorados protectores…”. 

E esta situação devia ser uma constante, porque dez anos mais tarde, já em 1849, a agiotagem continuava em discussão: “… Sabe a Camara quanto um empregado publico recebe hoje do seu ordenado? 35 a 36 por cento é o que recebe; porque além dos cortes que tem tido, soffre o rebate e ágio das notas em 10 por cento que tem de pagar, e 40 por cento mais de desconto ao rebatedor, por fim vem a receber 35 a 36 por cento. Ainda ha pouco fallei com um major que acabava de rebater o soldo do mez passado, por que tinha a familia a morrer de fome, e de 45 mil reis que tem, apenas recebeu 19 mil trezentos e tantos réis. Parece-me pois que alliviando os empregados destes 10 por cento, isto já ajudava alguma cousa para pagar ao rebatedor; em quanto ao atraso esse ha de sempre continuar…Sr. Presidente, não é pela approvaçâo do parecer da maioria da commissâo que ha de haver maior atraso no pagamento dos empregados; e agora vem a propósito fazer uma observação á Camara acerca de quaes são os grandes lucros que a agiotagem está fazendo sobre o Thesouro Portuguez. O empregado publico quando recebe mal e tarde o seu ordenado, vai á loja do cambista para vender a sua 4ª parte em notas, e perde 10 por cento; mas se antes apertado pela necessidade quiz rebater o seu recibo, ou a sua cédula, perdeu 40 por cento, que com os 10 do ágio são 50 por cento: de modo que a Camara deve ficar sabendo, que a despeza publica, que aqui se vota, é repartida do modo seguinte 50 por cento para a agiotagem, e os outros 50 unicamente para pagar aos servidores do Estado…”. A dúvida quanto à verdadeira causa que motivou a reforma compulsiva deste nosso antepassado vai continuar por esclarecer.

Maio, 27 - Requereu mais uma vez a sua reintegração no posto de Capitão, desta vez com uma nuance, a hipótese dessa reintegração se fazer “…em qualquer das Ilhas dos Açores com o vencimento do soldo da sua Patente e gratificação…”; este requerimento foi encaminhado para o Ministério da Marinha e Ultramar que superintendia nos assuntos de além-mar.  

Junho, 7 – Novo requerimento do capitão Rangel, a única diferença está em que agora pede a reintegração no posto de Capitão “…e ser empregado como tal em qualquer dos dois Quarteis-Generaes das Ilhas da Madeira, ou Terceira e ali fazer o Serviço que qualquer daquelles Cappitaens Generaes acentarem útil ao Serviço de Vossa Alteza Sereníssima, ou Cappitão com o soldo e gratificação no Corpo que está na Ilha de S. Miguel…”. 
Com este último requerimento acabam as notícias que sobre ele encontrei no seu processo individual. Depois desta data o Capitão António José Pereira Rangel, desapareceu. Parece ter-se esfumado. 

Faleceu em data anterior a 27 de Outubro de 1835, pois num documento constante no processo da partilha dos bens deixados por seu pai, o velho António Pereira Rangel, o tabelião escreveu “…no meu escritório apareceu presente D. Carolina Eusébia Rangel de Faria, casada com João António de Faria e este para efeito de a autorizar em juízo e por ambos me foi dito que nesta causa de inventário dos bens que ficaram por falecimento de seu defunto pai e sogro…”; o pai e sogro, era o Capitão António Rangel.

E termina assim este capítulo. O Capitão António José Pereira Rangel não teve descendência varonil, pelo que os seus genes foram passados às gerações futuras por suas filhas. 

A mais velha, a Ana Carolina, casou no dia 13 de Maio de 1826 na freguesia da Encarnação com Joaquim Rodrigues da Costa Chaves; a Carolina Eusébia, a segunda a nascer, casou com João António de Faria, e foi ela que nos transmitiu os genes dos Pereira Rangel; a mais nova, a Gertrudes, faleceu em data anterior a 1825. 

Colaboradores :

Luís Filipe Duarte Faria de Sousa
   Rui Manuel Mesquita Mendes

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